sábado, 26 de novembro de 2011

Alma Protetora


Certas construções têm alma. Parece que edifícios que já viram de tudo absorvem algumas características de seus habitantes. Prédios com crianças têm um ar infantil, com suas cores vibrantes e imagens agradáveis, seus corredores amplos e convidativos. Prédios com executivos são cinza e desprovidos de emoção, mas não de vida; eles são ansiosos e ávidos por mais, o que quer que ‘mais’ signifique. Porém algumas edificações emanam violência. Lugares públicos, sim, mas principalmente casas. Vidas arruinadas antes de sequer terem a chance de começar. E os edifícios se mantêm, cansados, mas firmes. Afinal, eles não têm escolha.
*
Antes de tudo ficar escuro, Tommy se lembrava de algumas coisas. As lembranças não traziam felicidade, mas eram as únicas que ele tinha. Ele se lembrava de pessoas correndo atrás dele. Ele nunca vira essas pessoas antes, mas não importava. As pessoas também nunca o viram antes. Elas conheciam, sim, o pai de Tommy. O pai de Tommy devia dinheiro para as pessoas. Não que Tommy se importasse. Ele só estava preocupado em trabalhar, ganhar algum dinheiro e fugir com sua irmã da vida de merda de seu pai.

As pessoas falam de bairros ruins. Todos dizem que bairros ruins são como árvores ruins: As frutas apodrecem antes que possam ser colhidas. Tommy não concorda. Ele acha que as pessoas são ruins, só. As únicas pessoas boas no mundo eram sua mãe e sua irmã, mas ele não sabia onde sua mãe estava. Ela os abandonara com o pai muito tempo atrás, tanto tempo que Tommy até poderia tentar esquecer que um dia tivera mãe. Agora só sobrava sua irmã. Prudence era pura. Tinha apenas doze anos, mas uma mente enorme. Ela ainda tinha esperanças, ela podia ser alguém na vida. Tommy precisava trabalhar, e conseguir emprego com dezesseis anos era difícil. Mas Prudence poderia viver uma boa vida, mesmo que isso custasse a de Tommy. E Prudence desenhava. Desenhos bonitos, mas manchados com as surras que o pai aplicava regularmente, surras essas que Tommy não era forte o suficiente para impedir. Mas ele tentava, e tudo o que conseguia fazer era desviar a atenção de seu pai para ele próprio. E então tudo ficava escuro de novo.

Era engraçado apanhar das pessoas que queriam o dinheiro do seu pai, por que ele não tinha nenhum. Há muito tempo ele parara de trabalhar, e Tommy sustentava a casa com seu salário ridículo. O que sobrava desse salário era usado para comprar comida e pagar as contas, por que todo o resto seu pai perdia no jogo. Essa era a razão pela qual o pai de Tommy devia dinheiro para as pessoas. E, por uma infelicidade do destino, Tommy acabara de receber seu pagamento. As pessoas não se importavam se aquilo era tudo o que ele tinha, se ele e sua irmã passariam fome. Era dinheiro. As pessoas simplesmente bateram em Tommy até que ele desmaiasse, o que não demorou muito, e então tomaram seu dinheiro. As pessoas tomaram o dinheiro para si próprias, e acreditavam que agiam com justiça, assim podiam dormir com calma a noite, sob o teto de suas vidas miseráveis e vazias. A vida do pai de Tommy era mais miserável e mais vazia, e ele não merecia sequer ficar perto do o anjo que era Prudence, quando mais tocar nela.

Por isso, Tommy resolvera adiantar seus planos.

Quando acordou, ele pôs os pensamentos de volta. Ele estava sentado na sarjeta suja de todas as impressões humanas que passaram por ali. Todo lugar conta uma história, mas isso é outra história. Tommy se recompôs, e percebeu que tinha sido abordado no meio da rua, em pleno pôr-do-sol. Não havia lugar que estivesse livre da violência, e Tommy agora percebia isso. Por isso ele se preparou de acordo.

Ele apalpou o bolso do casaco, e respirou aliviado ao sentir o peso do metal e sua forma irregular através do couro barato. Ele usara parte do dinheiro guardado para comprar um canivete, mas não tinha certeza se saberia como usá-lo. Ele não o sacou contra as pessoas que o espancaram por que elas provavelmente tomariam o canivete também, e por que já não importava mais. Tommy pensou que deveria ter comprado uma arma de fogo. Um canivete era pessoal demais, sujo demais. Com uma arma seria limpo, preciso, quase cirúrgico. Sim, era isso. Seria a remoção de um câncer, um tumor que parasitara a vida de todos por tempo demais. Talvez um canivete fosse mais adequado, afinal. Esse câncer seria retirado de maneira muito pessoal.

Tommy levantou o olhar. Já estava em frente ao prédio, que mal poderia ser chamado assim. Um grande lixão humano, com muitas frutas podres e uma ou duas jóias refinadas enterradas bem fundo na merda. A luz do dia, prevendo os acontecimentos hediondos que se seguiriam, fugiu rapidamente e a noite imperava quando, pela milésima vez, Tommy entrava pela porta do 201 e via seu pai jogado no sofá, assistindo TV, com várias latas de cerveja vazias espalhadas pelo chão. Mas não dessa vez. Dessa vez, embora as latas amassadas e vazias decorassem o ambiente, seu pai não estava lá.

Um grito agudo atravessou o apartamento, e Tommy soube onde seu pai estava. Ele olhou para as paredes, vigias silenciosas e impassíveis, se despedindo delas. Elas quase choravam. As latas no chão zombavam dele, e Tommy chutou uma delas, fazendo barulho e anunciando sua chegada.

Não demorou muito e seu pai apareceu, bêbado como sempre, com a última garrafa de cerveja na mão. Prudence chorava no fundo do apartamento. Tommy olhou bem nos olhos da criatura que jamais poderia ser seu pai e perscrutou sua alma.

Não havia nada lá.

Tommy sacou o canivete, e com um clique ameaçador anunciou suas intenções. A criatura que era seu pai rugiu como rugem os animais que prevêem seu fim e estão cegos com a coragem obtida segundos antes do embate final.

-Você pensa que é homem, garoto? Eu sou seu pai!

As últimas palavras doeram, mas não significavam mais nada. A criatura ainda estava presa a conceitos de paternidade, como se aquilo a protegesse.

Tommy não se moveu. Seus pensamentos pegavam fogo, mas sua fisionomia era fria como gelo.

Seu pai, embriagado pelo álcool e pela fúria, virou a garrafa para baixo, e antes que o líquido escorresse, quebrou-a na parede. Os cacos de vidro tilintaram e se juntaram ao cenário que exalava morte. A criatura então ergueu o braço, o vidro pontiagudo pronto para uma investida.

Mas não houve uma. Tommy cruzou o espaço entre eles como uma flecha, e parou a descida do braço com o canivete enfiado no pulso do homem. A lâmina protestou, mas enfim se desprendeu da carne com um jorro de sangue. O homem caiu, pálido, nas portas da morte, e mesmo assim aterrorizado. O sangue escorreu em galões, sem que ninguém viesse impedi-lo. O homem grunhiu, tremeu, olhou desesperadamente para seu algoz, suplicando por uma piedade que já não o salvaria, e enfim morreu, deitado em uma poça de seu próprio sangue.

Tommy caminhou pelo apartamento. Ele estava quieto. Extremamente quieto. As paredes prendiam a respiração. O garoto, agora um homem, alcançou o banheiro e se livrou do canivete. Então foi até o quarto de Prudence. Chamou por ela. Uma, duas vezes. Nada. Um arrepio percorreu sua alma. Tommy correu pelo apartamento, gritando. Ele enfim encontrou respingos de sangue pelo chão. A criatura fizera Prudence sangrar dessa vez. Agora ela não seria mais tocada. Nunca mais.

Tommy seguiu o rastro de sangue, e encontrou aquilo que um dia fora uma alegre menina de doze anos. Seu rosto era uma ruína. Seu olho esquerdo não passava de um hematoma, e sua boca fora cortada. Ele a embalou, e ao seu toque Prudence recuou, mas ao perceber quem era, abraçou-o. Permaneceram abraçados até que Prudence pudesse se levantar, e então partiram. Os vizinhos não fazem idéia para onde foram, e muito menos a polícia. O corpo nunca foi requisitado do necrotério, e ali repousa, em eterno pânico e surpresa.

As paredes respiram aliviadas.

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