domingo, 8 de fevereiro de 2015

O Jardim

          O sol banhava-se no jardim arruinado com uma facilidade incomum aquele dia. Em poucos dias do ano ele se mantinha por tanto tempo alto no céu, e com tanta beleza. As rosas cresciam selvagens, há muito tempo ignoradas pela tesoura de um jardineiro. As cercas-vivas haviam crescido de tal maneira que seu esqueleto metálico, que um dia lhes dera forma e beleza, envergara sobre seu peso e tornava a cena toda um espetáculo de decadência. Os caminhos de pedra, quase irreconhecíveis, já não guiavam a lugar nenhum. Aqui e ali, uma cratera se abrira no solo, uma cicatriz causada anos atrás pelos navios de guerra que assolaram o porto, visível do extremo norte do jardim. Mas a natureza não perdoara nem sequer essas tristes recordações de violência: mudas e ervas daninhas já cresciam onde outrora uma bomba explodira, cheia de som e fúria. Nada resta da bomba, pensou o jovem, ao caminhar ao lado da cratera; a natureza já começa a apagar os vestígios de sua breve e violenta existência. Suas consequências, entretanto... Estas ainda ecoavam na sua mente. Tanto era assim, que eram elas que o compeliam a continuar caminhando pelo jardim onde passara sua infância.

          O jovem caminhava hesitante, dolorosamente ciente do estado de abandono daquele que fora seu santuário. Por vezes, parava por completo, admirando um antigo esconderijo, agora ocupado por uma esperançosa muda de alguma árvore que ele não saberia reconhecer. Ao caminhar, evitava olhar para trás, onde estava o que sobrara da casa.  Já a explorara, e pouco restava dela que valia a pena ser lembrado. A cratera triste deixada pela bomba que destruíra por completo a construção imponente era quase um alívio, pensava o jovem. Seu único medo, agora, era se deparar com algum fantasma raivoso. Sem dúvida havia ressentimentos e assuntos mal resolvidos o suficiente para trazer de volta aparições indesejadas.  Pensando nisso, apertou o passo e se embrenhou mais ainda no labirinto formado por cercas-vivas desmoronadas.

          Dez anos atrás, sabia andar pelo jardim inteiro de olhos vendados. Suspeitava que ainda saberia, se os velhos caminhos não estivessem destruídos e os novos, criados pela força de vontade das ervas daninhas, não fossem desconhecidos. De repente, o jovem sentiu sua própria vontade se erodir. Ele se aproximava agora do lugar mais antecipado, onde passara as poucas horas de consolo de sua infância, entra uma surra e outra. Um pequeno gazebo, que elegantemente dava vista para a baía: ele se lembrava de quando era criança, e corria para aquele lugar a fim de observar os navios partindo, desejando ardentemente que estivesse em um deles. Mas a medida que a distância se encurtava, também diminuía sua esperança. O que fazia ali? Será que de fato esperava que ela também estaria esperando, como faziam tantos anos antes? Sim, de fato prometeram; mas ah, tanta coisa mudara... A guerra o mudara. Será que a reconheceria? Será que reconheceria seus sentimentos?

          “Vê, Mirela” o jovem se via dizendo, transportado para uma época distante. Estava sentado no gazebo, e Mirela sentava de frente para ele, o olhar perdido no horizonte. “Todos esses navios. Logo, partirei em um deles. A guerra... Há de levar todos nós. É inevitável.”

          Mirela mantinha-se calada, e seu olhar, impassível, mas o jovem sabia no que pensava. Quando ela se virou, os olhos castanhos olhando fundo nos seus, já sabia o que diria.

          “Será que uma bala no peito é um preço adequado a se pagar, para se ver livre desta casa?”

          “Não serei alvejado” retrucou o jovem, sem hesitar “Mas, se existe justiça, logo esse lugar será varrido da face da terra. E quando for, Mirela, voltaremos aqui. Nos encontraremos aqui, e então partiremos no meu navio, para qualquer lugar do mundo.”

          Mirela riu alto. Ela sempre ria quando falavam dos delírios de grandeza do jovem. Escapar dali. Roubar as freiras. Comprar um barco. Navegar sem fim... Deixar para trás os fantasmas do passado.

          Eles pareciam estar em todo lugar agora. As lembranças do orfanato ficavam mais vívidas: ele se lembrava das surras constantes, da crueldade das freiras, das noites passadas no frio... Mas também se lembrava de Mirela. E esperava, em uma esperança quase louca, que ela de fato estivesse lá, no gazebo, com as mesmas roupas de menina, olhando impassível os navios na baía.

          Faltava apenas mais uma curva. Seu coração batia desesperadamente, como quando corria de uma trincheira a outra, e, em um movimento involuntário, o jovem procurou sua arma. Não sabia por que a trouxera; a pistola não seria necessária ali, e os fantasmas, se houvessem, seriam imunes a ela. Mesmo assim, o peso familiar do metal trazia uma segurança que não podia ser substituída.

          Quando finalmente avistou o gazebo, percebeu que a luz do dia se desvanecera: o sol se punha ao fundo, e a baía estava iluminada com um milhão de cores diferentes. Seus navios, formas cinzas com contornos mal distinguíveis uns dos outros, ainda assim eram uma visão muito diferente da frota de guerra que bombardeara a cidade anos antes, e afastara (ou talvez aproximara?) os dois amantes. O gazebo ainda existia, para alívio do jovem: o caminho de pedras que levava à ele havia quase desaparecido, mas a pequena construção de madeira ainda estava de pé, com seus arcos pintados à mão de um branco desbotado pelo tempo.

          Mirela vestia roupas quase irreconhecíveis: vestes simples e rotineiras, de tons cinzas pouco notáveis; ainda assim, a mera visão daquela figura, olhando melancolicamente a baía, era o suficiente para que o coração do jovem se enchesse de alegria, medo, ansiedade e hesitação, em uma avalanche de sentimentos. Mirela, como sempre, sentiu que estava sendo observada e virou-se: os olhos dos dois se encontraram. O que poderiam ser séculos de distância, de incertezas e inseguranças, de lugares escuros e desesperança, apagaram-se naquele momento. Os dois entendiam-se perfeitamente.

          O sol se pôs, e um único navio, destacando-se das figuras cinzas e imóveis da baía, deixou o porto, em direção à uma lua enorme e livre.