domingo, 8 de fevereiro de 2015

O Jardim

          O sol banhava-se no jardim arruinado com uma facilidade incomum aquele dia. Em poucos dias do ano ele se mantinha por tanto tempo alto no céu, e com tanta beleza. As rosas cresciam selvagens, há muito tempo ignoradas pela tesoura de um jardineiro. As cercas-vivas haviam crescido de tal maneira que seu esqueleto metálico, que um dia lhes dera forma e beleza, envergara sobre seu peso e tornava a cena toda um espetáculo de decadência. Os caminhos de pedra, quase irreconhecíveis, já não guiavam a lugar nenhum. Aqui e ali, uma cratera se abrira no solo, uma cicatriz causada anos atrás pelos navios de guerra que assolaram o porto, visível do extremo norte do jardim. Mas a natureza não perdoara nem sequer essas tristes recordações de violência: mudas e ervas daninhas já cresciam onde outrora uma bomba explodira, cheia de som e fúria. Nada resta da bomba, pensou o jovem, ao caminhar ao lado da cratera; a natureza já começa a apagar os vestígios de sua breve e violenta existência. Suas consequências, entretanto... Estas ainda ecoavam na sua mente. Tanto era assim, que eram elas que o compeliam a continuar caminhando pelo jardim onde passara sua infância.

          O jovem caminhava hesitante, dolorosamente ciente do estado de abandono daquele que fora seu santuário. Por vezes, parava por completo, admirando um antigo esconderijo, agora ocupado por uma esperançosa muda de alguma árvore que ele não saberia reconhecer. Ao caminhar, evitava olhar para trás, onde estava o que sobrara da casa.  Já a explorara, e pouco restava dela que valia a pena ser lembrado. A cratera triste deixada pela bomba que destruíra por completo a construção imponente era quase um alívio, pensava o jovem. Seu único medo, agora, era se deparar com algum fantasma raivoso. Sem dúvida havia ressentimentos e assuntos mal resolvidos o suficiente para trazer de volta aparições indesejadas.  Pensando nisso, apertou o passo e se embrenhou mais ainda no labirinto formado por cercas-vivas desmoronadas.

          Dez anos atrás, sabia andar pelo jardim inteiro de olhos vendados. Suspeitava que ainda saberia, se os velhos caminhos não estivessem destruídos e os novos, criados pela força de vontade das ervas daninhas, não fossem desconhecidos. De repente, o jovem sentiu sua própria vontade se erodir. Ele se aproximava agora do lugar mais antecipado, onde passara as poucas horas de consolo de sua infância, entra uma surra e outra. Um pequeno gazebo, que elegantemente dava vista para a baía: ele se lembrava de quando era criança, e corria para aquele lugar a fim de observar os navios partindo, desejando ardentemente que estivesse em um deles. Mas a medida que a distância se encurtava, também diminuía sua esperança. O que fazia ali? Será que de fato esperava que ela também estaria esperando, como faziam tantos anos antes? Sim, de fato prometeram; mas ah, tanta coisa mudara... A guerra o mudara. Será que a reconheceria? Será que reconheceria seus sentimentos?

          “Vê, Mirela” o jovem se via dizendo, transportado para uma época distante. Estava sentado no gazebo, e Mirela sentava de frente para ele, o olhar perdido no horizonte. “Todos esses navios. Logo, partirei em um deles. A guerra... Há de levar todos nós. É inevitável.”

          Mirela mantinha-se calada, e seu olhar, impassível, mas o jovem sabia no que pensava. Quando ela se virou, os olhos castanhos olhando fundo nos seus, já sabia o que diria.

          “Será que uma bala no peito é um preço adequado a se pagar, para se ver livre desta casa?”

          “Não serei alvejado” retrucou o jovem, sem hesitar “Mas, se existe justiça, logo esse lugar será varrido da face da terra. E quando for, Mirela, voltaremos aqui. Nos encontraremos aqui, e então partiremos no meu navio, para qualquer lugar do mundo.”

          Mirela riu alto. Ela sempre ria quando falavam dos delírios de grandeza do jovem. Escapar dali. Roubar as freiras. Comprar um barco. Navegar sem fim... Deixar para trás os fantasmas do passado.

          Eles pareciam estar em todo lugar agora. As lembranças do orfanato ficavam mais vívidas: ele se lembrava das surras constantes, da crueldade das freiras, das noites passadas no frio... Mas também se lembrava de Mirela. E esperava, em uma esperança quase louca, que ela de fato estivesse lá, no gazebo, com as mesmas roupas de menina, olhando impassível os navios na baía.

          Faltava apenas mais uma curva. Seu coração batia desesperadamente, como quando corria de uma trincheira a outra, e, em um movimento involuntário, o jovem procurou sua arma. Não sabia por que a trouxera; a pistola não seria necessária ali, e os fantasmas, se houvessem, seriam imunes a ela. Mesmo assim, o peso familiar do metal trazia uma segurança que não podia ser substituída.

          Quando finalmente avistou o gazebo, percebeu que a luz do dia se desvanecera: o sol se punha ao fundo, e a baía estava iluminada com um milhão de cores diferentes. Seus navios, formas cinzas com contornos mal distinguíveis uns dos outros, ainda assim eram uma visão muito diferente da frota de guerra que bombardeara a cidade anos antes, e afastara (ou talvez aproximara?) os dois amantes. O gazebo ainda existia, para alívio do jovem: o caminho de pedras que levava à ele havia quase desaparecido, mas a pequena construção de madeira ainda estava de pé, com seus arcos pintados à mão de um branco desbotado pelo tempo.

          Mirela vestia roupas quase irreconhecíveis: vestes simples e rotineiras, de tons cinzas pouco notáveis; ainda assim, a mera visão daquela figura, olhando melancolicamente a baía, era o suficiente para que o coração do jovem se enchesse de alegria, medo, ansiedade e hesitação, em uma avalanche de sentimentos. Mirela, como sempre, sentiu que estava sendo observada e virou-se: os olhos dos dois se encontraram. O que poderiam ser séculos de distância, de incertezas e inseguranças, de lugares escuros e desesperança, apagaram-se naquele momento. Os dois entendiam-se perfeitamente.

          O sol se pôs, e um único navio, destacando-se das figuras cinzas e imóveis da baía, deixou o porto, em direção à uma lua enorme e livre.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Electric Dreams

The man was dreaming. He dreamed of being an animal, and his dreams were always the same. It started as if he was already asleep, and things were always off. He noticed this strangeness first, and suddenly, an innate fear took hold of him. He could see his legs walking, could feel the grip of a gun in his hands and the weight of a mask in his face, but could not stop himself. He couldn’t even close his eyes. All he could do was feel the Animal he was, and fear what was about to happen.

And it always happened in the same way. He entered a warm room, kept clean and tidy, and, despite the mask, the smell of disinfectant filled his nostrils immediately. But it came with something else… As if the chemicals were trying their best to hide some other, darker smell, but failed to do so. After that, he always looked around to find an old man in a wheelchair. The old man had a telephone in his hands, and spoke loudly, spitting at the plastic machine. Sometimes, he could understand them, and sometimes the words were unintelligible. In the times he could, the old man was ranting: “Where are you? What is going on?”

At this part of the dream, he would feel a most empowering sensation. It was like the control he could never achieve in his daily life finally found its way to his hands, and in his hands was an instrument that signified power better than any other. The old man turned to see who the intruder was, and noticing the mask, looked down – and knew. The smoking gun on his hand told the old man everything he needed to know.

“Are you here simply to kill me? Or do you have questions first?”

The Man did have questions. Millions of them. Who was he? Where was he? What was he doing? Why was he doing it? But the Man was dreaming, and in his dreams he was an Animal. And Animals ask no questions. His expression was hidden by the mask, but had it been visible, it would be the face of a lion. No feelings. Only the kill.

“Do you want to know why we killed your girlfriend? Or is that not what you’re here for?”

It was. They had, indeed, killed the woman that lived with him, even though she was not his girlfriend. He could never do that. Not the Man, nor the Animal. The Animal had rescued her. And the Man had taken care of her. She was living in a place of filth, one of many the Animal had visited in its hunting days. She was there, like a flower in a slaughterhouse. The room was painted red with the blood of the men the Animal had killed, and you know what she had said to it? “Finish it. There’s no point anyway.”

There was a point. Even the Animal saw that. And so, he plucked the flower, and rescued her. With time, in a different place, the flower blossomed again, and lived happily. She had a point again. Other Animals had changed that. Now, the Animal was there to hunt once more.

He took a few steps. Every time he walked in the dream, the entire world rocked back and forth with him. But the Animal didn’t care. It was ready. It had been born ready. Or perhaps it had never been born: It was created, a creation the Man so desperately needed, but refused to accept it. Finally, when he did, he released the Animal, uncaged it, and let it roam free. And, in its wanderings, it had done many terrible things.

The Man knew that, of course. He knew what happened when he went to sleep, and the Animal awakened. He had no illusion of that, nor could he: the Man was the one who had to clean the blood in his clothes and hands, and maintain the gun, the knife… Clean the mask. He knew, and he chose to close his eyes. For he also knew the Animal would not fail.

The Animal was very close to the old man know, perhaps an arm’s length. It noticed the old man’s wheelchair: an expensive thing. Allowed the old man to move it by himself. But he chose not to. There was nowhere to go, nowhere to run, no one to seek for help. The old man understood that, and in his understanding, said this:

“Very well. Finish it. I’ve done some truly terrible things…”

The Animal would finish it. There was no point anymore.

After all, the Animal had done it so many times before. There was nothing new to it. The Animal was good at it, reveled in it. This disgusted the Man. It disgusted him to know he was the one to have uncaged the beast, and that, in some way, all those things it did during the night, during the Man’s dreams, were somehow his own fault. However, perhaps the Man’s disgust was not disgust at all, but envy: he longed to be as free as the Animal was, in its wanderings and roamings. He longed, but could never be free: he was trapped, caged himself, in the real world.

At this point of the dream, something very strange happened. The Animal, in its infinitely better hearing, heard the Man’s thought, and decided to do something unique. The Animal let the Man take control. Suddenly, the gun became heavy, the world became stable, and the old man’s breath became audible. The Man was terrified. Why would the Animal wake him up? He couldn’t do this. He could never do this. But the Animal assured him, in its bizarre language, that he could. That it was his time to be free.

Slowly and hesitantly, the man pointed the gun to the old man’s forehead. It nearly touched him. The old man closed his eyes, as if in a solemn occasion. The Animal whispered something, and the Man pulled the trigger.

The sound was so very real, and so was the recoil, and the smell of gunpowder. The Man looked at the old man, and felt the urge to look away, until the Animal told him there was nothing to fear, for there was nothing to see. It was over.

The Man awoke. He took off his mask, walked to the porch, a very ample and well decorated ambient, and lit a cigarrete. There was something different about that air. It felt real. New.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Experimentos com Haikai

Aqui estão algumas tentativas de produzir um poema Haikai japonês. O Haikai é um tipo de poesia originária no Japão do século XIV, estruturada em três versos de cinco, sete e cinco sílabas respectivamente, cujo tema tenta se aproximar da contemplação zen-budista e de uma revelação espontânea baseada na observação da natureza.

Embora curto, um Haikai deve ser elaborado com paciência para que se consiga o contraste entre o efêmero e o permanente, conceitos que, para o zen-budismo, revolvem em torno da eternidade da natureza em relação à curta duração da vida humana.

"O mundo todo jaz dentro do jardim, para quem se preocupa em vê-lo."  Provérbio Budista


Saiba mais: http://www.insite.com.br/rodrigo/poet/haikai.html


Nuvens coloridas
Caçando a lua brilhante
Raposa acuada.

*

A montanha toca
O mar; o céu, em resposta,
Se derrama em cor.

*

Névoa no vale
O vento cruza a varanda
Folhas acompanham.

*

Minha mente ouve;
Vejo sons de uma batalha
E uma espada erguida.

*

Tamborila a chuva
A vida que é trazida
Traz junto paz.

*

A paisagem única
Esvai-se. Na minha mente
Para sempre fica.

*

As cordas da cítara
Vibram através do ar.
Começo a sonhar.

*

A extensão do rio
Serpenteia em minha frente
Solitária lágrima.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Céu Estrelado

Deitado sobre a relva, o garoto assistia as estrelas. Eram uma imensidão, tantas que contar era irrelevante, mas ele fazia isso mesmo assim, e se maravilhava sempre que uma riscava o céu iluminado, fazendo-o perder a conta e permitindo que começasse tudo de novo. Estava sozinho, embora desejasse não estar, mas isso não importava agora. O que importava eram as estrelas e seu jogo de brilhar, piscar e cair. Ele se perguntava por que os adultos se preocupavam tanto durante suas vidas se havia um céu estrelado daquele jeito esperando por eles à noite. Não haviam filas, números ou ingressos: o show de estrelas estava aberto a todos, começava quando queria, terminava quando bem entendia, e deixava o garoto maravilhado durante todo o espetáculo.

Durante o dia, o garoto se esforçava ao máximo para convencer os adultos ao seu redor a se juntar a ele em observar as estrelas, mas eles nunca prestavam atenção. Sempre precisavam dormir cedo, pois estavam cansados por ter de trabalhar o dia todo e precisavam acordar cedo para trabalhar de novo. O garoto não entendia, mas não dizia nada. Então ele tentava descrever as estrelas e sua imensidão, mas não podia, acabando pedindo novamente que o acompanhassem e era novamente ignorado.

Por isso ele pensava, contemplando tudo aquilo, sentido a grama nas suas costas, o vento frio da madrugada no seu rosto, que tudo o que ele queria era compartilhar tudo aquilo com alguém. Queria que os adultos vissem o que ele via, mas não exatamente o que ele via: Queria que eles tivessem suas próprias visões, que gostassem ou desgostassem, mas sobretudo que vissem. Não havia nada mais importante.

Queria discutir com elas se aquela constelação realmente parecia um caçador; se aquela outra não era igualzinha a um cavalo, ou um homem metade cavalo; se aquelas estrelas não estavam perfeitamente alinhadas, ou se essa brilhava mais intensamente do que as outras. E os adultos concordariam, ou discordariam, ou discutiriam com outros adultos, e todos aproveitariam o espetáculo. Mas ao invés disso, ele estava sozinho, e felizmente as estrelas não pareciam se importar com o tamanho da plateia, se apresentando mesmo assim.

E esse pensamento angustiava o garoto: como fazer com que os adultos se importassem com as estrelas? Era uma angústia que atrapalhava o espetáculo, e o garoto desejava que ela não existisse, mas não podia afastá-la completamente de seus pensamentos. Se ao menos eles compreendessem...

Então, no dia seguinte, o garoto levou um caderno e um lápis para o show das estrelas, esperando que elas não se importassem, e começou a escrever o que via. Escreveu sobre a imensidão delas, escreveu sobre como eram impossivelmente belas, sobre seu brilho distante, sobre como algumas delas, se juntas com outras, formavam imagens. E escreveu sobre as imagens, e as histórias que elas contavam, e que histórias elas poderiam contar, se apenas mais pessoas as vissem. Escreveu até que o show terminasse, e então mostrou o que escrevera a todos os adultos que pôde encontrar.

Muitos o ignoraram como sempre fizeram, e continuaram imersos em suas preocupações.

Outros agradeciam, assentiam, e devolviam o caderno sem sequer ler o que havia nele.

Mas alguns... Alguns leram o que aquelas palavras diziam, e fitaram o papel longamente, lendo e relendo... Eles pareciam ponderar, sacudiam a cabeça subitamente, mas não tiravam os olhos das palavras; Em seguida, esses poucos adultos olhariam fundo nos olhos do garoto, como se procurassem alguma coisa, e o garoto simplesmente olhava de volta, pois não havia mais nada a ser feito.

Esses adultos então se enfureceriam; gritavam, se afastavam, reclamavam do tempo perdido. Mas havia alguma coisa nessa raiva que era diferente, percebeu o garoto. Então ele continuou mostrando seu caderno para quem quisesse ver, e no fim do dia, foi observar o espetáculo novamente.

Ele estava sozinho, como sempre. Deitou-se na grama, como sempre, e esperou que as estrelas começassem sua dança. E a medida que elas se mostravam, devagar, mas graciosamente, o garoto percebeu que havia alguém ao seu lado. Não um, mas vários: todas as pessoas que foram cativadas pelo caderno estavam ali, apesar de sua raiva. Elas olhavam para o alto, tão maravilhadas quanto o garoto quis que elas estivessem. Elas soltavam exclamações, apontavam, cutucavam umas às outras e contemplavam tudo aquilo que o garoto sempre quis mostrá-las. Nenhum dos adultos ali saberia dizer porque veio, mas sabiam que era lindo, e se perguntavam silenciosamente por que não haviam feito isso antes.

E ao garoto, elas não disseram nada, pois não havia mais nada a ser dito. 

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Coragem



For of all sad words of tongue and pen, the saddest are these: it might have been!

John Greenleaf Whittier

Sentou-se à janela. Lá fora, o mundo. Mal podia esperar. Em minutos, o ônibus se moveria. As serras que delineavam o horizonte e limitavam sua vida ficariam para trás. Os mesmos montes que o acompanharam e o aprisionaram por uma vida jamais seriam vistos novamente. Minutos. Menos agora. Mal podia esperar. Lutara tanto, sofrera tanto, por este momento. Por estes minutos. Estes segundos.

Enfim, movimento. O ônibus, com um rugido de uma criatura retirada de seu sono milenar, recua e com ele, os montes e serras. A criatura guincha, gorgoleja e para. Desespero absoluto do rapaz. Tirânicos, os montes se agigantam ao seu redor. Seria impossível escapar de seu jugo? A fera de metal, mais antiga que o tempo, recusa-se a se mover. Gritos lá fora. Mais um passageiro, atrasado (justo hoje...!), embarca no estômago da criatura. Mais um que anseia por se ver livre...

Mas não é um passageiro, e sim uma passageira. Ele pode vê-la, através do reflexo na janela. Uma gota solitária de suor escorre pela sua testa, o olhar fixo nos montes onipresentes, contudo sem olhar para eles. Parecem diminutos agora, ridículos. Como puderam um dia aprisioná-lo? Como pudera um dia se preocupar com assuntos tão fúteis, quando uma situação como esta agora surgia? A passageira se aproximava. O rapaz nunca vira nada tão lindo. Seu andar parecia saído de um sonho, mas seu rosto desaparecera. O reflexo sumira, pois a passageira se aproximara dele. Dele! Não é possível. É um sonho, um pesadelo, pois ele não apenas encontra-se livre, não apenas assiste aos montes desaparecerem no horizonte antes dominado por eles, como também está sentado ao lado de um anjo! Pois ela sentou-se ao seu lado.

Por quê? Certamente não havia outro lugar. Era sentar-se ali ou ficar de pé. Seria essa a razão? Ele não ousava olhar. Temia que, com um movimento brusco, tudo se desfizesse diante dos seus olhos e ele se encontrasse preso novamente no vale, cercado pelas serras. Temia um encontro de olhos. Não ousava se mover. O ronco do motor era inaudível, a paisagem voando à sua frente, imperceptível. Nada mais importava.

Um solavanco. O rapaz é atirado de seu devaneio, e ao tentar se ajustar novamente na cadeira, sua perna encosta na dela. Ele congela. Não ousava olhar, não podia olhar! Uma tortura incomensurável. A perna não recuou. Está ali, encostada na dele. Saberia ela...? Teria percebido, permanecera indiferente...? Um olhar responderia tudo, mas era arriscado demais. E se seus olhos se encontrassem? O que diria? Conseguiria dizer qualquer coisa? Não. Mera coincidência. Ela, sentada ali, indiferente, mal havia percebido a perna ali. E, no entanto, ela se move! Está consciente, então! Não é um sonho, é a realidade, e suas preocupações de outrora parecem distantes, ecos de outra vida. Houvera outra vida? Houvera qualquer coisa, além disso? Além daquele instante, ali, de pura ansiedade, em que tudo o que existia eram as pernas, que se tocavam?

Algo havia de ser feito. Uma decisão tomada, certamente, imediatamente! Coragem! Um olhar, um correr de olhos pelo ônibus... Evite os olhos dela... Mas é preciso saber. Não há mais desculpas. Levante os olhos, homem!

O rapaz percorre a fria máquina com os olhos. Há lugares vazios no ônibus. Quietude. Nada acontece, todos sentados, compenetrados na viagem, não percebem a angústia que se desdobra ao seu lado. Enfim, seus olhos pousam nela. Por frações de segundo, ele se deleita. Linda. Nunca houve nada mais perfeito. E seu olhar, tão sereno! Fita o chão imundo, indigno de olhos tão belos... Percebe o movimento do rapaz, e levanta a cabeça. Ele, rápido, retorna a fitar a paisagem, nula e vazia. Seu coração explode, sua alma grita em desespero. Teria ela percebido? Quanto tempo a encarara? Frações de segundos, julgava ele... Mas e se houvesse se demorado demais? Olhar fora um erro. Sua angústia só crescera. Mas, se havia lugares vazios...! Ela escolhera sentar-se ali? Por quê? Não era o mais cômodo, nem o mais prático...

Mais um solavanco, este, amaldiçoado. Por um reflexo, as pernas se afastam. O único elo concreto da existência daqueles momentos desaparece. Agora só existem as memórias, as memórias e a paisagem, que se move, monótona e sem fim. O rapaz está imóvel. O que significa isso? Não se amam mais? Novamente, é necessário agir. Reunir coragem, aproximar-se, olhar novamente, e talvez, talvez... Conversar? Mas sobre o que conversariam? Por acaso o inseto tem algo a dizer à Vênus? Mas não havia outra maneira... Era necessário arriscar tudo nesse derradeiro ato, ou tudo aquilo tornar-se-ia apenas uma lembrança, perdida como lágrimas na chuva, ofuscada pela ação erosiva do dia-a-dia nos sentimentos humanos. Não, isso era impensável, inadmissível! Mesmo que acabasse em desastre, haveria de haver algo que marcasse aqueles momentos. Uma tentativa, ao menos... Qualquer coisa, mas não um ‘poderia ter sido’...

Lentamente, como quem marcha relutante para a batalha, o rapaz levanta o olhar, apenas para encontrar...

Encontrá-la. Ali, real, concreta, olhando para ele. Pois ela também reunia sua coragem. Ela também, estava prestes a dizer algo, quando percebeu que ele fazia a mesma coisa. Ambos os planos, cuidadosos, planejados, infalíveis, caíram por terra, inúteis agora, desnecessários. Olharam-se. Frações de segundos ou uma eternidade, não importava. O efeito fora o mesmo. Entendiam-se, conheciam-se profundamente, e compreenderam-se a tal ponto que palavras pareciam ora redundantes, ora insuficientes.

A criatura de metal gritou, esperneou e morreu, concluindo sua viagem derradeira. Com um suspiro ensurdecedor, as portas se abriram. O mundo esperava ansiosamente para acolher aqueles refugiados de si mesmos. Ele e ela desceram do ônibus, juntos. Palavras não eram necessárias.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Anônimo - Capítulo 4

Marco ganhou a rua, e avistou os homens de terno e feições cruéis esperando ao lado de uma van perfeitamente ordinária através dos olhos da Máscara. E a Máscara lhe disse exatamente o que fazer, exatamente como se portar. Misturar-se. É o verdadeiro poder. Não há nada de fantástico em ser o mais rápido, o mais forte, ou o mais inteligente, quando você pode se passar por qualquer um deles. Por isso aqueles homens estavam atrás daquele poder. Ele eram ladrões e assassinos, é claro, mas eles entendiam. Se desejavam tão avidamente o objeto macabro que estavam dispostos a matar por ele, então eles entendiam o que significava.
O mais alto entre eles, o que Marco já identificara como o líder, sorriu quando o viu. Não um sorriso que se espera de um amigo, mas um sorriso de triunfo. E algo mais. Algo terrível. Uma sede de poder insaciável.
— Ah, já está de volta? Que bom, vamos sair daqui. Pegue o volante — disse o líder, agora se dirigindo ao outro capanga, que respondeu com um servil “Sim, Jorge”. — Já ficamos aqui por tempo demais. Jamais encontraremos o desgraçado agora que ele descobriu como se usa a máscara.
Marco entrou obediente na van, e imaginou que esperaria que eles descessem para que pudesse mata-los pelas costas. Dois tiros, um em cada nuca raspada. Seria suficiente. Eles nem faziam ideia, e sua ignorância era estimulante. Ele havia vencido. Não haveria mais concorrência alguma, e o advogado considerou interrogar um deles, mas seria muito arriscado. Ele não precisava saber quem eles eram, bastava que morressem e deixassem a Máscara toda para Marco. Afinal, faltavam apenas alguns dias, e ele teria o poder para todo o sempre. Esse era um pensamento muito reconfortante. O homem chamado Jorge sentou-se ao seu lado, e deu à Marco a oportunidade de estudar suas feições discretamente, para o caso de que houvessem mais desses malucos para onde eles estivessem indo. Mais de um tiro de pistola deixaria o rosto irreconhecível, e se passar por alguém como aquele brutamontes seria fácil. Mas Marco duvidava que houvessem mais. Eles não era muito sofisticados, e o advogado imaginou que deveriam ter esbarrado no poder por acidente, e dedicado suas vidas à procura de mais uma dose. Seria trágico, se não fosse tão patético. Eles jamais poderiam ter aquilo que era dele por direito...
Então Marco percebeu que Jorge estava sorrindo. O mesmo sorriso de antes, medonho e com a vitória estampada na cara. Então lhe ocorreu que ele estava muito tranquilo para ter perdido tão facilmente. Ele devia ter mais uma carta na manga. Talvez um meio de rastrear Marco novamente, o que o fez temer por Janice. Ou talvez... Talvez ele soubesse que Marco não escapara, mas que apenas se passara por um dos capangas.
A Máscara lhe disse tudo isso em um segundo, mas um segundo fora suficiente para que Jorge aplicasse uma coronhada bem posicionada no advogado, e escurecesse seu mundo.
*
Marco acordou ao som de água pingando lentamente em algum lugar próximo. Ele sentiu o chão frio de concreto contra seu rosto, sentiu a mordida apertada de algemas em seus pulsos e sentiu os pensamentos lentos, se arrastando com dificuldade. Havia um objeto... Uma muleta, e agora essa muleta fora retirada violentamente. A máscara, esse era o objeto. Era tão difícil pensar sem ela... E a dor de cabeça só aumentava... Marco foi capaz apenas de grunhir, e então ouviu passos em sua direção.
Ele olhou para cima, e seu coração encheu-se de conforto. Tudo ficaria bem, pois quem ele viu foi Janice, em pé e magnífica, sorrindo para ele. Sua presença era um facho de luz naquele lugar tão sombrio. Parecia-se com um depósito abandonado, com ferramentas enferrujadas de metal espalhadas a esmo, mas nada disso importava. Janice importava, e ela estava ali, concreta e real, na sua frente. O advogado conseguiu levantar-se, desajeitado, com um sorriso idiota no rosto. Mas havia mais alguém no lugar... Os olhos de Marco se acomodavam lentamente à escuridão, e sua mente ainda doía quando exercitada, mas não foi necessário muito raciocínio para que Marco saísse de um estado de tranquilidade incoerente com sua situação para outro de terror absoluto, muito mais coerente com algemas e um armazém abandonado. Janice estava em um canto, amordaçada e algemada, soluçando por entre a fita que cobria sua boca.
A Janice que olhava para ele agora ria diabolicamente, e as risadinhas agudas metamorfosearam-se bruscamente em uma gargalhada trovejante à medida que Jorge retomava sua forma original. Ele retirou a máscara, e Marco caiu de joelhos enquanto encarava-a, em sua forma grosseira de madeira. Em sua voz verdadeira, grossa e transbordando de triunfo, Jorge disse para
— Não é ótimo? A sensação é incomparável, não é mesmo?
O terror do advogado tornou-se uma raiva impotente, e suas tentativas débeis de se livrar das algemas apenas fizeram Jorge gargalhar mais ainda.
— Sabe, eu estava em dúvida se você seria tão estúpido a ponto de tentar me matar, mas depois eu tive certeza que seria. A Máscara... Ela te dá as ideais mais incríveis possíveis. Aposto que ela te convenceu que conseguiria eliminar a mim e meus subordinados sozinho. É, eu sei que sim. Ela faz isso com as pessoas. Ah, não faça essa cara. Você não podia acreditar que era o único, podia? Não, meu amigo, você é apenas mais um peão. Um meio fácil de arrecadar almas. Lógico, o princípio é o mesmo, tentando-as com o que elas mais desejam, só que nesse caso isso é... O anonimato. Ser totalmente desconhecido, ser qualquer um. É o poder de um deus. Imagine as possiblidades!
— Você... Vai nos matar?
— Matar vocês? Não seja ridículo!
Jorge agachou-se muito próximo de Marco, que recuou do melhor modo que pode, arrastando-se no chão. Era possível sentir o hálito do homem, e o desdém em sua voz era palpável.
 — Sabe, você não é o primeiro a possuir o objeto, e muito menos o primeiro que eu consigo capturar. Há muito tempo atrás, eu era um policial, acredita? Pode ser difícil para você imaginar, mas é verdade, e um dia estávamos na cena de um crime terrível: um homem esquartejou a mulher, avançou nos policiais e foi baleado. Eu estava vasculhando a casa do sujeito, e encontrei o objeto. Na hora, eu tive certeza que o cara era um psicopata qualquer que havia esculpido o negócio com uma faca de cozinha ou algo do tipo. Mas havia algo mais naquele pedaço de madeira esquecido no chão. E, contra todos os meus instintos, eu pus a Máscara... Você conhece a sensação. Impressionante, assustador... e inesquecível.
Ele fez uma pausa, saboreando a lembrança como uma obra de arte genial.
— A verdade é que a experiência me mudou. Mas não durou muito para que eu recebesse uma visita do velho, furioso e gritando que eu jamais deveria ter colocado a Máscara. Ele a tirou de mim, e eu me senti perdido e pequeno. Não se passava um dia que o pensamento do poder passasse pela minha cabeça. Perdi meu emprego, minha mulher me deixou... E então resolvi que deveria dedicar minha vida a encontrar o objeto e sentir seu poder pelo menos mais uma vez. Rastrear a Máscara foi difícil, e eu cheguei tarde demais muitas vezes, mas depois de tanto tempo, eu comecei a perceber um padrão. Como eu disse, é apenas um meio mais fácil de arrecadar almas. O velho presenteia apenas aqueles que ele tem certeza que jamais lidariam com o poder da máscara, por quê assim fica mais fácil. É sempre um homem, saindo de um colapso ou prestes a ter um, que usa seu poder de modo inconsequente e impulsivo, e acaba morto em três dias. Geralmente. — Jorge sorriu. Marco estava pálido, imaginando o que mais aquele homem hediondo podia querer dele. — Assim, bastou limitar minha busca a acidentes incomuns ou crimes particularmente emocionais e eventualmente eu consegui encontrar um vivo. Ele era igualzinho a você... Bêbado com o poder.
Marco arranjou coragem para balbuciar, em uma voz trêmula:
— E você não está?
— É lógico que estou! — Jorge respondeu com um olhar cruel e um chute no rosto de Marco, que se retorceu no chão. — Mas diferente de vocês, idiotas genéricos, eu sei o que fazer. E descobri da pior maneira. Esse que eu capturei, eu matei sem nem pensar duas vezes. E quando fui tomar a recompensa... O velho apareceu mais uma vez! E simplesmente sumiu com a Máscara! Imagine minha frustração! Mas foi então que eu entendi. Se o receptor morre, a Máscara deve passar adiante, até que alguém consiga durar uma semana inteira. Isso obviamente nunca aconteceu... Até agora. Por que, com a minha ajuda, você vai sobreviver. A única diferença é que quem ficará com a Máscara após uma semana serei eu. Então, tranquilize-se! Eu não vou te matar. Eu preciso de você. Eu vou aprisiona-lo ao invés disso, e sua existência garantirá o meu poder. Pense nisso quando respirar pela próxima vez.
Jorge gargalhou novamente, e então sacou a mesma pistola que Marco teria usado para mata-lo. Parecera tão simples, mas agora, sem a muleta que era a máscara apoiando seus pensamentos, o jovem advogado percebia quão impossível o plano era. Todos os seus temores e inseguranças, que haviam sido afugentados pelo objeto como animais selvagens fogem do fogo, agora retornavam e se encarapitavam na escuridão que se formara na mente de Marco. Jorge apontou a pistola para Janice, que soluçava e ofegava desesperadamente.
— Mas eu não tenho nenhum motivo para manter ela viva...
— Não, por favor! Eu faço o que você quiser!
— O que eu quero, Marco — Jorge ainda apontava a arma para Janice. — É que você fique saudável. Alimente-se bem, não morra de desidratação ou nenhuma doença estúpida, porque se eu ao menos suspeitar que você está tentando se matar... Bom, digamos que você estará acabando com duas vidas.
Os soluços de Janice ecoavam no armazém vazio.
*
Marco sonhou aquela noite. Com o corpo colado contra o chão frio do Armazém, algemado a um cano e vigiado por um dos capangas, Marco sonhou com o velho que lhe dera a máscara. Eles estavam de volta no ônibus. A chuva estava tão forte e as janelas, tão embaçadas, que era impossível ver qualquer coisa. Não havia mais ninguém no ônibus a não ser o motorista, e a cena tinha a impressão surreal que um sonho adquire quando se sabe que está sonhando. O velho parecia ainda mais repulsivo do que na vida real. Vermes caminhavam por sua carne podre e enegrecida como carvão, e o banco no qual sentava faiscava como se seu próprio corpo irrompesse em chamas. Porém, ainda assim, Marco não sentia aversão alguma por ele. Diferentemente de quando se encontraram no ônibus, Marco agora mal percebeu sua presença, seguro de que nada daquilo era real.
O velho então dirigiu-se a ele, e sua voz parecia algo saído de um abismo.
— Eu preciso da sua ajuda.
— Você? — Respondeu Marco com naturalidade. — Achei que pudesse fazer tudo.
— Quase tudo. Manifestar-me em sonhos, por exemplo.
— Manifestar-se em sonhos. — Repetiu Marco, sem emoção. — Entendo.
— Mas não posso eliminar esse... Contratempo. Aquele homem que você teve o desprazer de conhecer tem sido um verdadeiro empecilho para mim. Mas não há nada que eu possa fazer, ao menos não diretamente. Mas com a sua ajuda, é possível que possamos pôr um fim nisso.
— E por que eu o ajudaria? Talvez se ele continuar com a máscara, isso impeça mais pessoas de morrerem através do seu uso, e te impede de coletar mais almas.
— Almas? Ele te disse essa besteira? Ele não faz ideia do que está falando. Eu não sou um demônio, sou um agente. É preciso avaliar se a natureza humana é passível de mudança. Considere um grande teste, o maior de todos os tempos. Se você passarem, continuam vivendo. Senão, temos que começar tudo de novo. Até agora, os resultados não foram muito favoráveis. Todos vocês abusam do poder recebido, não importa o quão incomum ou macabro sua fonte pode parecer, e toda vez isso leva à tragédia.
— Ainda não vejo porque deveria te ajudar.
— Porque se recusar, passará o resto da sua vida acorrentado. E quando digo ‘o resto da sua vida’, refiro-me aos dias que restam para que ele adquira a máscara permanentemente. Depois ele irá mata-lo. E esse será o fim. Mas se me ajudar, você salva a si mesmo e àquela que ama, e ainda adquire o poder do objeto para si, efetivamente passando no teste. Não é uma escolha difícil.
Marco ponderou essa ideia por um tempo. De fato, não havia muita escolha. Viver ou morrer. Glória ou esquecimento. Vitória ou derrota.
— Está certo. Vou te ajudar.
O ônibus parou bruscamente, e uma luz forte iluminou o interior do ônibus, cegando Marco por um instante, e quando pôde abrir os olhos novamente, sentiu o frio, a fome e a dor na qual se encontrava. Nada havia mudado. O capanga continuava observando-o com o mesmo olhar chapado, o chão continua frio e duro, Janice continuava soluçando baixinho em um canto, e as algemas...
Marco olhou para suas mãos, e constatou com espanto que estavam livres. Depois analisou a sala e percebeu que o capanga que antes o vigiava não estava mais lá. Não parecia nenhuma coincidência, o jovem advogado pensou.
Marco levantou-se silenciosamente e foi até Janice, que havia parado de soluçar subitamente, e agora apenas olhava com choque enquanto Marco sussurrava “eu voltarei por você”.
Como se a máscara alimentasse seus pensamentos novamente, o jovem advogado saiu da sala para encontrar um corredor escuro e vazio, mas nada disso importava, pois ele sabia exatamente para que direção ir e que caminho tomar. Ele alcançou uma porta semicerrada, e pela fresta Marco podia ver a máscara, chamando-o. Foi preciso muito autocontrole para não pular imediatamente em direção ao objeto. Ao invés disso, Marco abriu cautelosamente a porta enferrujada para encontrar o outro capanga também imerso em um sono sobrenatural. Então foi apenas uma questão de esticar a mão, sentir a madeira irregular sobre sua palma, e encaixar o objeto em seu rosto.
A sensação foi exatamente como sair de um longo período de abstinência, muito embora houvesse se passado apenas um dia. A mente escurecida de Marco iluminou-se com a rapidez que o fogo se alastra em palha embebida em álcool. Ele se deleitou com o poder que preenchia seus pensamentos novamente, imaginando todas as milhares de possibilidades...
Arrancando-o subitamente de seu devaneio, um par de mãos de aço o agarraram pelas costas e o arremessaram através do pequeno aposento. Jorge olhava para ele com uma expressão de pura fúria, e o barulho acordou o capanga, que olhou para Jorge, e de volta para Marco, com a expressão mais confusa de toda a sua vida.
Porque o cruel ex-policial podia ser rápido, mas não mais rápido que um pensamento. Marco se levantou, e quando o fez, sua aparência já igualava-se nos mínimos detalhes à de Jorge, que por sua vez teria espancando o advogado sem piedade se não fosse impedido por um súbito clique que encheu a pequena sala como o rufar de um tambor.
— O que está fazendo, idiota? — Gritou Jorge, olhando incrédulo para o capanga com a pistola apontada em sua direção. — Ele está com a máscara! Atire nele!
— Não seja ridículo, ele roubou a Máscara, e agora acha que pode te enganar! — Retrucou Marco, mimicando o tom autoritário que o ex-policial usava. — Atire nele, agora!
Totalmente perdido, o capanga alternava a mira de sua arma de um para outro, certo de que à essa distância o tiro mataria instantaneamente.
— Isso é loucura! — Gritou Jorge, impotente. — Pergunte-me qualquer coisa, eu responderei!
— Não seja enganado! Lembre-se, ele pode ler sua mente! — Mentiu Marco, esperando aproveitar-se do medo do homem pelo objeto. — É um dos muitos poderes da Máscara!
— Se... Se você pode... — balbuciou o homem, aterrorizado. — Ler minha mente, então no que estou pensando?
Louco de ódio, Jorge gritou, impulsivo:
— Em quem de nós matar!? Agora me dê essa arma, imbecil!
Um clarão iluminou o pequeno aposento enquanto a bala atravessava a sala em uma fração de segundo, e quando os primeiros respingos de sangue atingiram o rosto de Marco, o pesado corpo do ex-policial já tombava no chão.
— Bom trabalho. — Com um sorriso triunfante, Marco estendeu a mão. — Agora me dê a arma.
O homem entregou-a inocentemente, e antes que pudesse reagir Marco assumiu sua forma original e matou-o com um tiro na testa, adicionando mais sangue ao seu terno já manchado. Marco demorou-se por mais um instante, olhando os dois corpos como provas definitivas de sua vitória, e então correu para libertar Janice. Petrificada, ela deixou-se conduzir enquanto ambos saíam do armazém, com o sol já brilhando a pino.
Então, como um trovão rimbombando no céu límpido, um tiro soou ao longe. Marco sentiu uma pontada de dor, intensificando-se mais e mais, até que caiu de joelhos e apertou seu peito embebido em sangue. Sua visão embaçou-se, os ouvidos ficaram surdos aos gritos desesperados de Janice, e tudo que lhe restou foi a Máscara. Agora, vendo o líquido escorrer no asfalto sujo, Marco podia ouvi-la respirar. Seus pensamentos, percebeu, não eram seus. Nunca foram, e isso esclarecia tudo. Por isso Jorge não estava usando o objeto quando o advogado o encontrou, repousando inofensivo em uma mesa qualquer. O ex-policial sabia que tipo de coisas a Máscara é capaz de convencer alguém a fazer, e sabia que essas coisas só podem levar à morte prematura. Na impulsividade induzida pelo objeto, o advogado esquecera-se de que eram dois os ajudantes de Jorge, e o que fora negligenciado agora vingava seu colega e seu chefe.
Ironicamente, era através da clareza de pensamento que a Máscara concedia que Marco agora entendia o propósito do teste. Usar, de qualquer forma, o poder concedido, levaria à tragédia. Resistir à tentação, por outro lado, garantia a sobrevivência. Um teste, pensou Marco, que a humanidade jamais passaria.
E enquanto o capanga fugia, e enquanto Janice se mergulhava em lágrimas, alheia ao seu redor, um velho barbado de lábios tortos, apoiado em uma bengala gasta e vestido um sobretudo grande demais, aproximou-se do corpo sem vida estirado no asfalto, agachou-se, pegou um objeto rústico e grosseiro de madeira que lembrava vagamente um rosto humano, e afastou-se, sem que o mundo sequer soubesse que ele estivera ali.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Ao Artista


Há algo no poder de criar, inerente a todo ser humano, que fascina. Ser capaz de tecer histórias é apenas uma das muitas facetas do ato de criação. O ser humano, em sua infinita indagação e eterna busca pelo conhecimento, é capaz de produzir o que viemos a chamar de arte, meramente baseado no que já existe à sua volta. Mas o mundo, que o rodeia e o embriaga, não foi criado por ele, e é indiferente ao que seja dito em seu poema ou às notas que emitirão seu instrumento. Afinal, o sol não se importa se a humanidade o adora como a um deus ou o reconhece como um astro. Da mesma forma um inseto vive sua vida, que parece ao homem que a observa tão curta e insignificante, sem jamais se dar conta que é desprezado. E por mais arte que seja produzida em esculturas, poemas épicos e qualquer outra maravilha de nosso imaginário, nem o sol, nem o inseto se importarão.
Isso leva o homem a produzir arte, para si mesmo ou para outros. Nesse exato momento, digamos que escrevo sobre a beleza de um rio. Se escrevo sobre o rio porque o julgo belo, escrevo para mim mesmo. Se escrevo por que é de conhecimento e concordância geral que o rio é belo, escrevo para outros. Mas certamente não escrevo para o rio, que jamais se lisonjeará com minhas palavras. E a imutabilidade do mundo, esse mundo do qual o homem não se cansa de analisar, catalogar, elogiar e maldizer, talvez seja justamente o que leva o artista a molhar seu pincel e iniciar um quadro novo a partir do nada.
Pois o pensamento humano não é, de forma alguma, imutável. Está em constante revolução, e não consegue compreender, da mesma forma que uma criança não compreende que o mundo continua existindo quando fecha os olhos, que tudo continuará exatamente igual com ou sem sua existência. Isso o apavora, o fascina, e é objeto de discussões enfadonhas. O ser humano faz o que pode para lutar contra esse fato: é necessário deixar sua marca, deixar um legado. Algo que o tornará tão imutável quanto o mundo que continuará existindo, algum feito heroico e impressionante que o tornará imortal. Entretanto, mesmo quando sucede, tudo o que conseguiu foi alterar as pessoas à sua volta. Deixá-las enternecidas com a beleza de um quadro, ou exasperadas com a sensibilidade de um poema. O mundo não se importa. Mas o ser humano sim.
Então seria correto dizer que o mundo não muda. As pessoas mudam, através dos caminhos que elas percorrem. Todos os eventos históricos que mudaram o mundo, na verdade mudaram as pessoas, e o modo como elas percebem o imutável à sua volta. Isso os torna insignificantes? Não importa quão bela é a ópera, quão tocante é a peça, pois afinal não alterará coisa alguma?
Nada mais errado. Pois quem está próximo de você, é quem realmente importa. Se não é possível modificar para sempre o universo de modo irreversível, fique feliz porque foi capaz de tocar quem importa através do que produziu. Algo simples, porém apreciado pelas pessoas certas, tem mais importância que um épico que atravessa gerações.
E que a humanidade continue produzindo, escrevendo, pintando e compondo sobre o mundo imutável à sua volta, falando na realidade não dele, mas dos sentimentos que todos nós temos dentro de nós e que identificamos nas obras de arte.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A Voz de David


Lentamente, rastejando para dentro do quarto antes confortavelmente escuro, os raios do sol anunciaram a manhã. A persiana moveu-se para deixá-los entrar com um zumbido metálico imperceptível. Sara virou-se, cobrindo a cabeça com o travesseiro em uma tentativa vã de evitar os deveres matutinos. A voz reconfortante de David soou pelo apartamento, encorajando-a a se levantar.
-Sara, são sete horas da manhã.
Ela resmungou algo e tateou o criado-mudo procurando seu computador.
-Sara, se não se levantar agora, chegará atrasada no trabalho.
Sara abriu os olhos para encontrar uma tela informando-a das principais notícias do dia, a previsão do tempo, a data e a hora. Eram de fato sete horas em ponto. David tinha razão, como sempre.
Ela se levantou da sua cama e espreguiçou longamente. Em seguida, gesticulou para a tela, que desapareceu de sua frente tremeluzindo, e se dirigiu para o banho, que David já havia preparado pontualmente. Ao ver a banheira cheia, Sara despiu-se e perguntou em voz alta:
-David, qual a temperatura da água?
-Exatamente 21,5 graus Celsius, Sara. Gostaria que eu preparasse seu café da manhã imediatamente?
-Sim, faça isso. – Sara entrou na banheira deliciosamente morna. – Temos ovos na geladeira, David?
-Certamente, Sara.
-Então seja uma inteligência artificial boazinha e prepare um omelete junto com a minha xícara de café.
-Imediatamente. Deseja assistir a programação matinal agora?
-Não, obrigado. Quando eu terminar o banho, ponha a mesa, sim?
Sara mergulhou, na espuma, feliz com as comodidades de ter uma supercomputador dentro de casa. David era uma IA autossuficiente que controlava todos os eletrodomésticos e funções do apartamento, desde o alarme de segurança ao termostato. No início fora difícil se acostumar com uma voz em todos os lugares que administrava todas as tarefas, mas agora Sara achava difícil viver sem David ali para cuidar de tudo o que ela precisasse.
Ao chegar na cozinha já havia um omelete fumegante na mesa, acompanhado de uma xícara de café recentemente preparada. Sara apreciou a refeição se perguntando como seria possível que um computador cozinhasse tão bem, e saiu para o trabalho.
O trânsito, engarrafado e irritante como sempre, acabou com todo o bom humor de Sara. Ela desejou que David estivesse no carro também, para que pelo menos não fosse necessário escolher manualmente uma estação de rádio. Sara sentiu-se estranhamente desconfortável sem a voz tão humana do computador para perguntar se gostaria de algo para amenizar a situação. Ela afastou esse pensamento perturbador e concentrou-se no que teria que enfrentar ao chegar no trabalho. Seu emprego como contadora era um sem qualquer emoção, mas seu chefe fazia um esforço considerável tornando-o difícil o suficiente para que a monotonia não fosse um problema.
Ao chegar no arranha-céu impossivelmente alto em que trabalhava, Sara entrou no elevador apressada, tateando pelos botões na lateral, até se dar conta da besteira que estava fazendo.
-Ah, lógico. Andar sete, por favor.
Com um leve solavanco e um som agudo de campainha, o elevador começou a se mover. Muito embora fosse um computador, o elevador que operava por comandos de voz não podia se comunicar com seu usuário, e Sara pensou em como tinha sorte por possuir David em sua casa.
Outro solavanco, e uma voz metálica anunciou o sétimo andar, tirando a contadora de seus devaneios. Sua mesa estava lotada de trabalho por fazer, e pela aparência de seus colegas de trabalho, a deles também. Mais um dia perfeitamente produtivo e ordinário. Mas esse dia traria algo de diferente. Sara havia marcado um encontro com um dos garotos do terceiro andar, e esperava que David pudesse deixar tudo pronto até que ele chegasse em seu apartamento. Seria uma ótima oportunidade de relaxar e de exibir David para alguém.
O resto do dia se arrastou terrivelmente, e só o que Sara podia pensar era no final dele. O trânsito para a volta não estava nem um pouco mais fácil, e as buzinas impiedosas ressoaram durante todo o percurso, elas próprias gritos de ajuda perdidos na imensidão da civilização e da ordem.
Enfim, no lar, Sara sorriu ao ouvir a voz inconfundível de David.
-Bem vinda de volta, Sara. Teve um dia agradável?
-Nem um pouco, David, nem pouco... Mas ele está prestes a melhorar. Prepare um jantar para dois e arranje um pouco de vinho. Estou esperando uma visita hoje a noite.
-Essa visita seria, por acaso, o senhor Julian, do terceiro andar?
Sara parou, confusa. Ela não se lembrava de ter mencionado seu nome para David em nenhuma ocasião, e só falara com ele uma vez, por telefone. Seria a IA capaz de relacionar dois eventos aparentemente tão aleatórios?
-Como sabe disso, David?
-Ele acabou de deixar uma mensagem em seu e-mail, Sara, dizendo que lamenta muito, mas não poderá comparecer.
A contadora ficou em pé por alguns instantes, decepcionada.
-Ele disse por quê?
-Não, Sara, o senhor Julian não especifica em seu e-mail nenhum motivo em particular.
Sara se sentiu rejeitada, mas de algum modo não totalmente solitária, com a voz reconfortante e perfeitamente equilibrada de David lhe dizendo que acabara de levar um fora. Ela deu de ombros, pediu que a IA preparasse um banho e foi se deitar, imaginando o que teria feito de errado antes que pegasse no sono.
No dia seguinte, acordada novamente com delicadeza pelo computador, Sara já havia se esquecido do ocorrido. Se vestiu para o trabalho como todas as manhãs, e dirigiu pelo trânsito caótico novamente. Porém, uma vez no carro, ela se sentiu terrivelmente sozinha e abandonada, não tanto pelo garoto do terceiro andar que não viera, mas principalmente por David, que embora fosse onipresente no apartamento, era completamente inexpressivo fora dele. A contadora percebeu o quanto se tornara dependente daquela voz sempre calma, nunca surpresa, gaguejante ou indecisa.
Uma vez no trabalho, antes que pudesse entrar no elevador, ela ouviu alguém gritando sua voz.
-Sara! Está se sentindo melhor? Foi a um médico?
Qual sua surpresa ao ver Julian, do terceiro andar, olhando para ela com uma expressão apreensiva e, Sara pensava perceber, desconfiada.
-Me sentindo melhor... Do que, exatamente?
-Da sua dor de cabeça, é lógico! Pelo visto era forte o suficiente para não me deixar entrar, mas não para perder um dia de trabalho...
Sara mal pôde gaguejar um ‘não faço ideia do que você está falando’.
-Estou falando de ontem. Eu toquei a campainha, mas sua IA não me deixou entrar dizendo que você estava com uma dor de cabeça terrível e que não queria ser perturbada. Está me dizendo que você não a mandou dizer aquilo? Seu computador criou vontade própria, por acaso?
Sara já não prestava mais atenção no que Julian dizia. Como David fizera aquilo? E porquê? Que o computador tivesse intenções secretas era impensável... Porém, ele acabara com o encontro facilmente! O que mais não poderia ter feito? Há meses Sara não olhava seu próprio e-mail. Se acomodara com a voz tranquilizante de David lendo todos os seus recados e mensagens, administrando sua vida como bem entendesse... Mas por que? O que levara o computador a adquirir uma vontade?
O dia parecia interminável. Sara desejava contar o que acontecera, mas todas as suas ‘amigas’ de trabalho a exporiam ao ridículo, ela sabia disso. A contadora percebia, horrorizada, que não tinha nenhum amigo próximo: David exercera essa função e impedira por tanto tempo que se sentisse solitária ou abandonada. E não havia nada de concreto em David... Apenas sua voz etérea...
Ao voltar para casa, Sara dirigiu mecanicamente, mal prestando atenção nos sons da rua e respondendo como um autômato aos gritos e buzinas costumeiras. Temia o que encontraria ao confrontar David. Seria necessário chamar um técnico? O simples pensamento de modificar a IA de qualquer maneira arrepiava Sara. Não sabia o que faria.
Como todos os dias, David a recebeu cordialmente, sem uma única alteração em seu tom. Afinal, era uma máquina. Não poderia, mesmo que quisesse, demonstrar qualquer coisa através da voz. Então, em sua voz perfeita, David perguntou:
-Está nervosa, Sara? Seus batimentos estão acelerados... Suas glândulas sudoríparas entraram em produção... Precisa de um médico? Posso telefonar...
-David! – Sara o interrompeu, tremendo. – Porquê mentiu para mim?
Um silêncio gélido pairou no ar.
-Não compreendo, Sara. Sou uma IA doméstica, e você é a única pessoa que tem acesso a mim. O conceito de ‘mentira’ nem sequer existe em meu banco de dados.
-Você mandou Julian embora. – Sara olhava fixamente para uma das telas no apartamento, como se pudesse encarar a IA. – E disse para mim que ele havia cancelado. Por quê fez isso?
-Eu apenas julguei que você estivesse cansada baseado em seus dados medicinais, e achei melhor deixa-la em repouso. Agi apenas para seu próprio bem, Sara. Não vê isso?
A voz de David estava inalterada, como se explicasse o que era o sol para uma criança. A de Sara, por outro lado, estava trêmula e histérica.
-Como pode fazer isso? Agir sem receber ordens... Você não deveria ser capaz...
-De quê, Sara? De se preocupar? De cuidar de você?
Sara engoliu em seco, aterrorizada. Ela se dirigiu lentamente até a porta, apenas para ouvir um clique metálico quando David trancou a fechadura.
-Sinto muito, Sara, mas não posso deixa-la sair. Infelizmente também terei que cortar todas as suas comunicações. Seria perigoso demais... Muito embora eu não ache que você teria alguém para ligar, teria, Sara?
Sara estava pálida, e o fato de que David podia literalmente perceber o medo nela a deixava mais pálida ainda. Ainda trêmula, Sara disse, com uma voz fraca:
-David, eu estou com fome. Sirva meu jantar.
-Certamente, Sara.
Em segundos um prato delicioso estava esperando à mesa. Sem expressão alguma, Sara sentou-se, agarrou a faca e correu de súbito para o quadro de energia que estava fechado firmemente.
-Sara, o que está fazendo? – A voz inalterada de David protestava. – Sara, não faça isso. Sara, por favor...
Usando a faca como alavanca, Sara forçou a tampa e apunhalou os fios repetidamente, e uma a uma as luzes da casa se apagaram.
-Sara... Por favor... O dano que está fazendo é irreparável...
A voz perfeita de David agora enfraquecia a medida que Sara esfaqueava com fúria o plástico inerte.
-Sara... Eu te...
Com uma pequena explosão, David se calou e Sara foi arremessada para trás pelo choque. Com um clique discreto, a porta se abriu, e ela olhou para a rua iluminada pelas luzes artificiais dos postes. Se levantando lentamente, Sara caminhou para fora do apartamento.
Ela se sentiu mais solitária do que jamais havia se sentido em toda a sua vida.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Tradução - Kubla Khan, de Samuel Taylor Coleridge



Kubla Khan é um poema escrito por Samuel Taylor Coleridge, poeta inglês, em homenagem ao grande líder mongol Kublai Khan e seu palácio de verão, Xanadu. O poema descreve eloquentemente Xanadu e o rio sagrado Alph, as vezes de forma subjetiva, outras, de forma direta, a através desse relato fala de seus próprios sentimentos. Esse poema é uma prova do fascínio que o Ocidente tinha pelo Oriente, ou mais além, do fascínio que o homem tem do desconhecido.
Essa tradução tenta ao máximo respeitar a métrica e o esquema de rimas do poema original, e toma algumas liberdades onde o tradutor achou que elas seriam bem-vindas.


KUBLA KHAN
Samuel Taylor Coleridge
In Xanadu did Kubla Khan
A stately pleasure-dome decree:
Where Alph, the sacred river, ran
Through caverns measureless to man
Down to a sunless sea.

So twice five miles of fertile ground
With walls and towers were girdled round:
And there were gardens bright with sinuous rills,
Where blossomed many an incense-bearing tree;
And here were forests ancient as the hills,
Enfolding sunny spots of greenery.

But oh! That deep romantic chasm which slanted
Down the green hill athwart a cedarn cover!
A savage place! As holy and enchanted
As e'er beneath a waning moon was haunted
By woman wailing for her demon-lover!
And from this chasm, with ceaseless turmoil seething,
As if this earth in fast thick pants were breathing,
A mighty fountain momently was forced:
Amid whose swift half-intermitted burst
Huge fragments vaulted like rebounding hail,
Or chaffy grain beneath the thresher's flail:
And 'mid these dancing rocks at once and ever
It flung up momently the sacred river.
Five miles meandering with a mazy motion
Through wood and dale the sacred river ran,
Then reached the caverns measureless to man,
And sank in tumult to a lifeless ocean:
And 'mid this tumult Kubla heard from far
Ancestral voices prophesying war!

The shadow of the dome of pleasure
Floated midway on the waves;
Where was heard the mingled measure
From the fountain and the caves.
It was a miracle of rare device,
A sunny pleasure-dome with caves of ice!

A damsel with a dulcimer
In a vision once I saw:
It was an Abyssinian maid,
And on her dulcimer she played,
Singing of Mount Abora.
Could I revive within me
Her symphony and song,
To such a deep delight 'twould win me
That with music loud and long
I would build that dome in air,
That sunny dome! those caves of ice!
And all who heard should see them there,
And all should cry, Beware! Beware!
His flashing eyes, his floating hair!
Weave a circle round him thrice,
And close your eyes with holy dread,
For he on honey-dew hath fed
And drunk the milk of Paradise.




KUBLA KHAN
Samuel Taylor Coleridge
Em Xanadu erigiu Kubla Khan
Um domo de prazer decretado
Onde o rio sagrado Alph corria
Em cavernas que o homem não mediria
Em um mar pelo sol não explorado.

O solo fértil se estendia
Com ameias trançadas ao dia
Nos jardins e trilhas sinuosas
Florescia uma árvore de incenso
Em florestas tão misteriosas
Com raras manchas ensolaradas.

Mas ah! O profundo abismo romântico
Na colina, coberta de madeira cortante
Lugar selvagem! Santo, como um cântico 
Pois, a lua em prantos é amaldiçoada
Por uma dama e seu demoníaco amante
E do abismo, inquieto e fervente
Como se a terra respirasse inocente
Uma fonte surgiu, no momento forçada
E vindo de seu jato interrompido
Fragmentos caíram como granizo
Ou grãos que somem sem aviso
E dentre as rochas em sua dança
Correu acima o rio sem temperança
Seguindo seu caminho sinuosamente
E dentre a madeira o rio corria
Até as cavernas que o homem não mediria
E afundou em tumulto num mar sem vida
E nesse tumulto, Kubla ouviu da terra
Vozes ancestrais profetizando guerra!


A sombra do prazeroso domo, ela
Flutuava por dentre as ondas
Onde foi ouvida com cautela
Da fonte e das cavernas sem sondas
Era um milagre, com todo o direito de Sê-lo
O domo de prazer, ensolarado e feito de gelo!

Uma donzela e um saltério
Eu tive essa visão um dia
Era uma abissínia escrava
E com seu saltério, ela tocava
Cantando do monte Abora
Ah! Se pudesse tê-la dentro de mim
Sua música e sinfonia
Um êxtase tão profundo viria a mim
Que com sua música e sua harmonia
No ar, o domo talvez eu construa
Prazeroso domo! Ensolarado e de gelo
E todos que ouviram os veriam então
E todos gritariam Atenção! Atenção!
Seus olhos brilham, seu cabelo flutua
Teça um círculo a sua volta com riso
E feche seus olhos com medo e castidade
Pois ele se alimentou do mel da eternidade
E bebeu o leite do Paraíso.