quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Diário

I

-Aqui estamos senhor.

O jovem desceu do carro importado lentamente. O motorista, vestido em um terno italiano caríssimo, abriu a porta para ele. O jovem, impressionado com a mordomia, agradeceu, mas o motorista se contentou em fazer uma reverência apressada, então descarregou as malas e foi-se, como se nem estivesse ali em primeiro lugar.

O jovem então levantou a vista para contemplar a mansão. A fachada era imponente, com certeza. Uma escada ladeada por duas águias esculpidas em granito levava à magnífica porta de madeira direto de Paris. Havia duas janelas do lado da porta e mais duas no segundo andar, o que dava a impressão de que a casa vigiava quem estivesse se aproximando com quatro olhos sempre atentos. Ela se estendia bem mais para o oeste, sendo que a ala leste desembocava em uma estufa. A casa tinha um telhado que se projetava para o alto, no intuito de preservar o calor e afastar o frio das noites de inverno alemãs. No topo da casa havia diversas gárgulas, que de acordo com o costume europeu afastam maus espíritos. Porém uma das esculturas se sobressaía: Esculpidas em alguma rocha que o jovem não podia identificar, estavam duas águias lutando. A águia que estava por cima era esculpida em algum tipo de rocha branquíssima, sem nenhum salpicado de marrom e preto característico do marfim. Era inteira branca. A águia que se defendia, por sua vez, fora esculpida de uma rocha essencialmente negra. As duas águias contrastavam tanto que faziam desaparecer as outras gárgulas. A escultura era tão perfeita que parecia prestes a voar e, mesmo de tão longe, ela ainda transmitia a ferocidade das águias.

O jovem foi arrancado de seu devaneio por uma voz vinda da casa. Um senhor de idade vinha descendo as escadas com um sorriso controlado. Ele vestia uma roupa típica servil, e o jovem concluiu que se tratava do mordomo da casa.

-Bem vindo, senhor Folkester, bem vindo. – disse o mordomo em um português fluente, porém carregado de sotaque alemão. – Deixe-me levar às malas para o senhor...

-Não precisa. Eu mesmo levo. – disse o jovem Johann Folkester, em um alemão impecável. O mordomo se deteve por um segundo, talvez impressionado que seu novo patrão de classe média brasileira falasse alemão. – A viagem foi longa, e eu pretendo tomar um banho antes de qualquer coisa. Depois, o senhor se importaria de me mostrar a casa, senhor...?

-Hoffman, senhor Folkester. Hermann Hoffman, vindo de uma longa linhagem de Hoffmans servindo Folkesters, senhor. E, apesar de tudo, o senhor é um legítimo Folkester, e eu me esforçarei para servi-lo tal qual servi seu tio-avô, e meu pai serviu o pai dele, e o pai deste antes disso...

Johann subitamente parou. Ele se virou para o mordomo.

-Meu tio... Por que ele fez isso?

-Perdão, senhor?

-Eu compreendo que ele não tinha herdeiros... Mas havia tantos outros! Meus irmãos, meus primos... Todos... Como você disse? "Legítimos Folkesters", embora brasileiros. Porque me escolher para deixar tanto dinheiro, e uma propriedade tão impressionante?

O mordomo desviou o olhar.

-Vamos entrar senhor. Logo anoitecerá, e o frio não espera que as pessoas entrem nas suas casas. O senhor fez uma longa de viagem, e qualquer outro assunto pode esperar até que o senhor tenha jantado e descansado. Vamos, eu lhe mostrarei os seus aposentos.

O jovem obedeceu, e entrou na mansão. O interior da casa era tão impressionante quanto o exterior. Os móveis eram muito antigos, mas muito bem preservados. As paredes eram revestidas de madeira lustrada e o chão era forrado com tapetes enormes. Havia quadros pendurados nas paredes e tapeçarias que pareciam tão antigas quanto a queda de Roma. Uma escada de madeira bem trabalhada ao fundo da sala levava ao segundo andar, e este não era menos impressionante que o primeiro. Corredores longos, iluminados a gás, serpenteavam por todo o segundo andar, levando a inúmeros quartos e banheiros, uma biblioteca, uma sala de estudos e um escritório com uma máquina de escrever e uma coleção de vinhos. O mordomo mencionou também uma cozinha no primeiro andar e uma adega no porão, mas Johann disse que depois a visitaria. Ele tomou um banho e desceu para a sala de jantar, onde um verdadeiro banquete o esperava. A sala de jantar era ampla, com uma mesa de madeira ricamente trabalhada e com uma parede inteiramente de vidro, dando para a imensa propriedade Folkester. Uma chuva forte martelava o telhado da mansão, e relâmpagos iluminavam o céu noturno. Após comer, Johann voltou a interrogar o mordomo.

-Sente-se, Hermann, e me explique com calma porque um tio-avô alemão que eu jamais conheci me escolheu para herdar todo o seu dinheiro e essa propriedade.

O mordomo acomodou-se, e começou a falar.

-Seu tio, Erik Folkester, foi... Um homem excêntrico. Ele sempre viveu sozinho na mansão, e quando seu avô foi para a América do Sul fugindo da guerra, ele permaneceu. Esta propriedade foi tomada pelo partido nazista de 1939 a 1941, e usada como base de operações na região, principalmente devido à sua proximidade com a polônia. Meu pai e eu vivemos essa época com seu tio, porém eu era muito jovem para me lembrar com clareza. Eu sei, pelas histórias que meu pai me contava, que seu tio desaprovava a guerra desde o início, e era sempre frio e rude com os oficiais que passaram a morar nesta casa. Quando as... Atrocidades nazistas foram expostas ao público, seu tio-avô temeu por sua própria segurança, devido ao seu curto envolvimento com os nazistas. Porém ele não foi convocado ao tribunal de Nuremberg, e viveu o resto de seus dias aqui, escrevendo em seu diário. Quando o câncer veio, ele se desesperou. Disse que era cedo, que não havia mais tempo. Ele viva repetindo que sua paz dependia de você e do diário.

-Diário? Que diário?

O mordomo fez uma pausa.

-Sim, senhor Folkester, há mais um objeto que seu tio-avô deixou para você. Esse diário, segundo o próprio Erik, era o bem mais valioso que ele deixava para você. Ele jamais me explicou porque escolher você, especificamente. Ele apenas dizia que "era o certo a se fazer". Ele me instruiu a esconder o diário dos advogados para que ele não fosse acrescentado à herança, pois a existência do diário deve ser mantida em segredo. Eu não sei por que, e nem me atrevi a ler esse diário. Assim sendo, cumprindo a última vontade de meu patrão anterior, eu lhe entrego o diário.

O mordomo tirou do casaco um livro muito velho e desgastado, com uma capa de um verde simples, agora desbotado. O livro estava amarrado com um barbante puído e selado com o selo dos Folkester.

Johann lentamente apanhou o diário, sentindo a fragilidade do documento. Parecia que toda uma geração o observava atentamente. Ele retirou o selo com uma faca, arrancou o barbante e abriu o diário.

Hermann observou atentamente seu novo patrão devorar com os olhos as páginas amareladas. Johann dispensou o mordomo sem dizer mais nenhuma palavra, olhos fixos no diário. Obediente, Hermann se despediu e, cheio de perguntas, se recolheu para seu quarto. Eles só se viram na manhã, quando o mordomo encontrou o patrão ainda lendo o diário, com um interesse ainda maior do que antes. Após perguntar se ele precisava de alguma coisa, o mordomo se manteve imóvel ao lado de Johann por mais algum tempo, quando por fim o patrão fechou o livro e o pôs de lado. Um brilho em seus olhos estampava o mais puro fascínio em seu rosto. O mordomo imediatamente perguntou:

-Senhor, se me permite perguntar... Qual o conteúdo do diário?

A pergunta tirou Johann de seu devaneio. Ele levantou o olhar e, cheio de empolgação, respondeu:

-É muito interessante, Hermann... Muito interessante de fato. O diário é um detalhado relato dos anos em que a mansão foi transformada em um posto de operações nazista. Apesar das diversas colocações políticas de meu tio, parece que até 1942 a mansão não foi muito diferente de muitos outros postos de operações por toda a Alemanha.

-Porém, à medida que a guerra avançou e o Eixo foi perdendo territórios, a mansão foi ganhando mais importância, chegando a receber a visita do chefe da polícia secreta nazista Heinrich Himmler. Toda essa atenção se deu ao fato de que a mansão foi escolhida pelo alto escalão nazista para ser o local onde seria guardada uma caixa de valor inestimável... Meu tio-avô não revela qual o conteúdo dessa caixa. Ao que parece, ele não sabia ao certo. Mas ele menciona que ela era guardada constantemente por metade do regimento na estufa da mansão, e que pelo menos duas vezes por semana alguém do alto escalão ia visitá-la. Ele também menciona uma conversa entre dois oficiais dizendo que a guerra dependia da caixa... De qualquer forma, era algo de extrema importância. Porém o diário é muito vago... Meu tio interrompe a narrativa diversas vezes para dar um discurso anti-militar e se perde em seu próprio relato. Mas mesmo assim está mais do que claro que algo aconteceu nesta casa... Algo que os Aliados nunca chegaram a descobrir... – Johann fez uma pausa. Ele então balançou a cabeça. – Ridículo. Não é possível, como algo assim permaneceria sem ser descoberto? Provavelmente não é nada. Se fosse algo assim tão importante, porque não guardá-lo em Berlim? Não faz sentido... Não.

O brilho desapareceu dos olhos do patrão, à medida que percebia a falta de sentido na narrativa de seu tio-avô. Ele então desabou na poltrona e dispensou o mordomo.

-Senhor, se permite dizer... Acredito que o senhor esteja errado.

-É lógico que eu estou errado. A história é totalmente sem nexo, como pude acreditar...

-Não, senhor, não foi isso que eu quis dizer... Eu acredito que seu tio-avô tinha razão ao dizer que a caixa era algo impressionante.

-Ah, é? E por quê?

-Bom, não posso confirmar nada sobre a própria caixa, mas houve um fenômeno nessa mansão que nunca foi explicado. A estufa não produz nada desde que eu era menino. Meu pai me contava de quando ela era cheia de vida, mas por algum motivo nem meu pai nem eu nunca conseguimos fazer com que nada crescesse lá. O senhor não teve tempo de ver, senhor, mas aquela estufa é totalmente morta. Eu desisti de plantar qualquer coisa lá há tempos.

Johann pulou da poltrona.

-Na estufa! Mas era lá que a caixa era mantida... Leve-me até lá, Hermann! Agora mesmo, pegue as chaves, rápido, rápido!

O mordomo, com um pequeno sorriso no canto do rosto, apanhou as chaves e seguiu para fora da mansão, em direção à estufa, seguido de perto por Johann. Ela ficava a quinhentos metros da mansão, e o mordomo não mentira quando disse que era um lugar morto. Prateleiras enchiam a enorme estrutura de vidro, vazias em sua maioria. Aqui e ali havia vasos de plantas mortas há muito tempo. O solo era duro e descoberto, contrastando com a grama alta do resto da propriedade.

Johann se aproximou lentamente, examinando o solo com cuidado. Subitamente, ele se levantou, e disparou para o mordomo:

-Hermann, qual foi a causa da morte de seu pai?

O mordomo olhou para seu patrão fixamente, como se não tivesse entendido a pergunta.

-Perdão?

-Ah, você me ouviu. Qual foi?

-Eu... Eu... – O mordomo se impressionou com a firmeza de seu patrão, e por fim respondeu – Ele morreu de câncer, senhor. Um tumor. Porque o interesse, se me permite perguntar?

Johann ficou parado no meio da estufa morta por vários minutos. Quando o mordomo repetiu a pergunta, ele olhou de volta, com um olhar vazio. Depois respondeu:

-Não seja idiota, Hermann! Seu pai morreu de câncer! Meu tio-avô morreu de câncer! Uma caixa nazista misteriosa guardada em uma estufa morta! Junte os pedaços!

O mordomo empalideceu.

-O senhor acha que a caixa era... Uma arma biológica?

-Eu tenho certeza, meu amigo! – ele então voltou quase correndo para a mansão, pegou um casaco e as chaves de um dos muitos carros na garagem da mansão, e quando o mordomo perguntou aonde ia, ele respondeu – Eu vou à cidade, Hermann. E você devia fazer um exame... Deus sabe se você também não foi contaminado! Até logo!

E com isso deixou o mordomo cheio de medo, interrogação e surpresa plantado na porta da mansão enquanto ia à cidade... Conseguir respostas.

Fim da primeira parte.


 


 


 

Um comentário: