quarta-feira, 18 de maio de 2011

Decoração

A avenida movimentada e barulhenta se encaixava bem no perfil da cidade grande. Carros passavam incessantemente, e o som do trânsito era onipresente. A cidade respirava poluição, e em seu turbilhão de vidas podiam-se encontrar sofrimentos, decepções, alegrias e realizações humanas que nela habitavam. Sim, a cidade era uma coisa, estava viva, e a grande avenida era sua artéria principal. Ou assim o parecia para Mary.

Mary nunca tivera uma vida interessante. Cresceu e foi educada em uma cidade pequena, onde qualquer deslize, qualquer paixonite e qualquer segredo era assunto público. Especialmente para ela, filha do médico. Ela via todas as suas amigas, com vidas tão mais interessantes, indo a festas, e ela em casa estudando, aprendendo piano, recitando a missa. Por quê? Por que ela era a filha do médico, claro.

E o que se esperar da filha do médico que não um marido médico? Mary foi apresentada a Harry por seu próprio pai, provavelmente já maquinando o casamento dos dois. Foi uma cerimônia tradicional, com uma lua-de-mel tradicional. Apesar da infertilidade de Harry, ela sempre se esforçou em ser uma esposa compreensiva e, acima de tudo, respeitosa. Mas eles se amavam, ou assim Mary imaginava. Ela era feliz, o tanto quanto uma mulher pode ser quando tudo que ela é na vida é ser esposa do médico.

Por isso foi um choque quando Harry lhe disse que iriam mudar. Sair do interior, ir pra cidade grande. Oportunidade de trabalho, dissera Harry. Ela nunca estivera fora do estado antes, e agora isso! Mas Mary se acostumou com a cidade grande facilmente, chegando a apreciar sua sinfonia caótica e imprevisível. Ela acabou por tornar a cidade grande uma cidade pequena. Tinha uma rotina tão restrita que acabou criando sua própria cidade, que consistia do supermercado, uma ocasional ida às compras, aulas de piano nas quartas, francês nas sextas. E sempre a tempo de voltar pra casa e deixar o jantar pronto. Então ela conversaria com Harry sobre seu dia, e ele contaria uma história sobre um paciente problemático ou uma cirurgia complicada. Então ela iria para cama cedo, e recomeçaria tudo de novo. Uma rotina comum, porém inflexível, e Mary não conhecia mais nada além dela. Ela gostava da idéia de que, quando estivesse longe do marido, ele sempre saberia onde ela estava. Sempre. Quebrar a rotina era algo impensável, um delito inadmissível. Não que Harry notasse quando ela o fazia, mas ela se sentia horrível, como se mentisse para o marido que nem sequer sabia da importância de tal rotina.

Portanto, qual sua surpresa quando, na plataforma do metrô, viu Harry a alguns metros dela!

No início, ela se encheu de felicidade. Ela gritou e acenou para ele, mas quando ele se virou, ela silenciou imediatamente, e permaneceu quieta, mãos nas sacolas, invisível. E o fez porque viu algo na face do marido que jamais vira antes. Era medo, mas um medo de momento, como se ele estivesse regado de adrenalina. Ao ouvir seu nome, Harry se virou imediatamente, como um cão faz quando ouve alguém rondando a casa. Harry sondou a multidão, exatamente como um cão faria, diversas vezes, irritadiço e assustado. E isso aterrorizou Mary.

Primeiro, porque ela nunca, jamais via Harry naquela estação. E como sua rotina era inflexível, Mary teve certeza de que algo de errado. Algo terrivelmente errado. E a reação frenética de Harry apenas confirmou esse temor. E quando viu seu marido entrar em um vagão diferente do dela, a mulher nem pensou. Seguiu-o instantaneamente, sem pensar. Seus olhos corriam aflitos pelo vagão, e quando encontraram o marido, também aflito, aquietaram-se. Ela o seguiu por mais algumas estações, e finalmente ele saltou. Mary seguiu-o, escondida pela multidão. Ela o viu entrar em um bar barato e desconhecido, e resistiu ao impulso de entrar atrás dele e perguntar o que havia de errado. Ao invés disso, ela teve outra idéia. Acenou para um garçom, e pediu uma mesa do lado de fora, logo em frente para a vitrine enorme do bar. De lá ela podia ver claramente seu marido, que olhava freneticamente para o relógio, e depois para o cardápio, e depois para o relógio de novo. Então, por fim, suas feições mudaram. Um alívio súbito substituiu toda a aflição, e Harry relaxou instantaneamente. Mary percebeu a razão, e ela congelou. Ficou parada, como uma estátua, escondida atrás do cardápio barato do bar. Pois o que deixara Harry tão aliviado fora a chegada de uma mulher!

Mary estremeceu. Ela não conhecia a mulher, mas sabia que era bonita; Estava vestida em um terno e usava óculos modernos, que realçavam a suavidade de sua face. Ela era alta, e sabia andar de salto. Ela sentou-se à mesa de Harry, e eles conversaram por meia hora, e Mary podia jurar que nunca tinha visto seu marido tão feliz. Uma amante! Mary sentiu suas entranhas se revoltarem, e achou que ia vomitar. Sua lealdade e seu carinho pelo marido subitamente se tornaram ódio. Ódio mortal, e a facilidade com que isso aconteceu assustou a própria Mary. Mas a Mary do interior sumira, e em seu lugar havia ódio puro. Ela ficou remoendo seu ódio até que o profano casal saísse do bar, e então aquela Mary cheia de ódio levantou-se e seguiu-os, com a cautela de um soldado atravessando um campo de batalha. Ela os seguiu o dia inteiro, e esse dia fora uma tortura. Eles passearam pelo centro o dia inteiro, entrando e saindo de lojas caríssimas. Os pensamentos de Mary então se tornaram violentos. Ela fantasiou segui-los até um motel, onde ela entraria no quarto e o redecoraria com o sangue dos dois...

Ela então pensou, ponderou a idéia. Era a única coisa razoável a se fazer. Nada mais.

Ela então voltou para o apartamento, e vasculhou as coisas de Harry até que encontrou sua arma. Um revólver pequeno e leve, discreto, mas letal. Ela então sentou na cama e esperou. Não se moveu o resto da tarde. Ela mantinha o frio objeto de metal na mão o tempo todo. Horas passaram, e por fim, seu marido chegou. Ela levantou-se lentamente enquanto ouvia a ladainha de Harry sobre um dia difícil na clínica, e seu ódio só aumentava ao ouvir as mentiras. Então, sem pensar, fitando o vazio, ela saiu do quarto e apontou a arma para seu marido. Ele não percebeu no primeiro momento; Estava muito ocupado procurando nos bolsos do casaco algo, até que tirou de um deles um pequeno envelope. Então ele viu a arma, e antes que dissesse uma palavra, Mary atirou. Três vezes, e acertou todas as três.

Assim, sem rodeios. Quando viu que Harry percebia o objeto de metal apontado para ele, ela atirou. E, ainda sem emoção alguma tirou da mão dele o envelope, enquanto a vida se esvaía do homem. Ela o abriu e leu. Quando terminou ela deixou a arma cair, sem sentir o peso dela na sua mão. E riu. Sentou-se calmamente, releu o envelope várias vezes e riu mais ainda, enquanto observava seu marido se arrastar pelo chão, tentando alcançar algo que não estava a seu alcance.

O envelope dizia:

"Querida Mary;

Ainda nesta semana um caminhão virá entregar móveis novos e decorar toda a casa. Eu passei uma tarde inteira com a decoradora escolhendo os móveis, e, acredite, tive que passar pela mesma estação que você sempre pega de manhã! Espero que tenha conseguido manter segredo. É meu presente de aniversário para você, meu amor.

Feliz Aniversário

Harry"

Ela riu até que o homem ensangüentado aos seus pés parasse de se mover, e então o riso se transformou em um choro.

4 comentários:

  1. Uma Crônica ao estilo "Nélson Rodrigues :A vida como ela é." Bela construção dos personagens,mas triste.A vida "pequena", rotineira, previsível,estava dentro da Mary, ela parecia realmente não ter saida, não só naquele momento, mas a vida toda.Conformada com o destino que ela acreditou ter sido traçado para ela,e que isso seria a garantia da felicidade.Tudo tão previsível que diante do inesperado não soube ver outras saidas,até as mais simples como perguntar, duvidar ou brigar. Emoções não faziam parte da sua vida. Bonito texto,porém triste. Ana L.

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  2. Incrível conto! Belo twist no final, q nos deixa tristes pela impossibilidade de Mary de se comunicar... Tem uma melancolia q me lembra Roald Dahl. Já começou a ler?

    Parabéns! Keep writing :)

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  3. Vitor, vc escreve super bem, parabéns! Meio “Amodóvar (mulher louca reprimida) meets Tarantino (vingança sangrenta)”, né? ;-)
    Eu só mudaria o título, viu? Acho que o título pode "entregar" o twist do final pra quem prestar atenção. Fora isso, sem defeito! :-D

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