segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Anônimo - Capítulo 1

O tamborilar da água na janela encardida do ônibus embalava Marco em um sono sem sonhos. A cada tranco do velho monstro de metal, o recém-formado advogado se aproximava da sua ilustre morada: um apartamento pequeno, sujo e barato escondido entre dois prédios muito mais chamativos.
O ônibus barulhento parou para que Marco descesse; uma carruagem digna de seu príncipe. O jovem era relativamente alto, com a barba bem aparada como era de se esperar de um advogado de sua classe. O cabelo liso caindo na nuca e escondendo sua testa acentuava seus olhos escuros, lábios finos e nariz reto.
Marco nem se deu ao trabalho de correr debaixo da chuva torrencial, pois ele lera em algum lugar que isso só piorava as coisas, mas agora não tinha certeza; poderia ter sido o contrário. Ele puxou seu casaco para cima com força, com a esperança de que o gesto intimidasse a chuva e a fizesse parar. Já encharcado, Marco alcançou a porta de seu apartamento, forçou a chave pra dentro e dois lances de escada depois, adentrou a calma e a tranquilidade de seu castelo: livros largados pelo sofá, louça de dois dias entupindo a pia e comida congelada.
Passando reto por tudo isso, Marco alcançou seu laptop, sua janela para fora do mundo exterior que o sufocava.  Ao abri-la, seu browser mostrou as páginas mais visitadas, e como que zombando dele, lá estava a número um: a rede social da sua ex. Mais visitada que a sua própria. Protegido por uma tela, Marco revisou cada detalhe possível da vida dela: desde comentários em fotos até mensagens para tios, nada escapava da melancolia do advogado.
Por fim, cansou-se e desligou o computador. Empurrou alguns livros para o chão e dormiu no sofá, amaldiçoando seu chefe por fazê-lo acordar tão cedo. No dia seguinte, ao som de seu celular gritando e esperneando, ele amaldiçoou seu chefe mais uma vez enquanto se preparava para fazer a jornada de volta para um lugar que ele nem queria estar.
Com uma mochila no ombro, Marco correu para o ponto de ônibus, já atrasado. Ele ouviu os gritos do senhorio, algo sobre o aluguel, e sentiu uma vontade irresistível de descarregar sua frustação nele, mas já estava atrasado o suficiente.  Ao alcançar o ponto, respirou aliviado por meio segundo até se voltar para um casal, também esperando pelo transporte, se beijando sem pudor algum, ali, na frente de todo mundo. Isso enfureceu Marco, e ele desejou não estar cansado da noite mal dormida para dar um sermão naquela indecência.
Quando o ônibus chegou, Marco quis perguntar ao motorista por que tanta demora, pois ele já estava bem atrasado, mas não disse nada. Pagou ao cobrador silenciosamente e se sentou do lado da janela, com sua mochila ocupando o assento ao seu lado para evitar conversas desnecessárias porque, francamente, quem se importa em conversar com uma pessoa que você nunca viu e provavelmente nunca verá de novo?
Imerso nesses pensamentos, o olhar de Marco cruzou com o de um senhor de chapéu, a barba branca caindo do queixo e os lábios tortos, como se estivesse prestes a sorrir. Estava apoiado a uma bengala e, com a outra mão segurava-se para não cair com os solavancos do ônibus. Usava um capote cheio de bolsos e sapatos gastos, e tudo na sua aparência o dava um ar de desdém que enervou o advogado, o que não era muito difícil. O maior de seus temores se concretizou quando o velho, apontando para a mochila, pediu para se sentar ao seu lado.
Marco não teve forças para recusar, e em um protesto silencioso, retirou a mochila e se concentrou na janela, evitando qualquer contato com o velho. Infelizmente, o velho se inclinou e disse, com uma voz pesada, como se grunhisse:
-Você não queria estar aqui, queria, filho?
Marco se virou, como se não houvesse escutado direito, mas antes que dissesse algo o velho continuou.
-Se pudesse você estaria a milhares de quilômetros daqui, em uma praia ensolarada, numa ilha deserta. Mas talvez não precise. Quem sabe se você pudesse ser apenas invisível... Quem sabe então sua vida seria mais tolerável.
O jovem percebeu que o velho era louco, mas havia algo nele que o intrigava. Sua aparência parecia ter mudado de desdém para expectativa, como se pacientemente esperasse por algo tão certo quanto o pôr-do-sol.
-Você sabe do que eu estou falando – continuou o senhor – Anonimato. Ser capaz de dizer e fazer o que quer que queira, sem consequências.  Se tornar um completo estranho, inidentificável e invisível. Sim, você anseia por algo assim, não, criança?
Marco olhava sem entender, mas ele sentia que, no fundo, entendia muito bem. Seu âmago realmente desejava desaparecer, porém se fazer presente. Se ele pudesse ser o centro das atenções em um momento, fazer com que todos vissem o mundo como ele via em um discurso inspirador e sumir no momento seguinte... Isso seria simplesmente perfeito. Uma dádiva que Marco com certeza faria por merecer. Sua mente era um livro aberto para o velho, agora com a boca disforme contorcida em um sorriso malicioso.
-Eu posso fazer seu sonho virar realidade...  Se for o desejo de sua mente e de sua alma, assim será. – o velho tirou de dentro do casaco grande demais para ele o objeto mais feio que Marco já vira. Era uma máscara de madeira grosseiramente esculpida, com farpas em todo lugar devido a visível inexperiência do artesão e buracos malfeitos para os olhos, formando feições inexpressivas e perturbadoras – tudo o que você precisa fazer é pôr a máscara. Você jamais será reconhecido de novo; alcançará a forma mais pura de anonimato.
O impulso inicial de Marco era rir do pobre homem e dá-lo como louco, se livrando do problema imediatamente. Mas havia algo na máscara que o atraía, a própria feiura que o repelira também o intrigando. Ele quase podia ouvir a máscara sussurrando, chamando, gritando seu nome. Porém seus instintos de advogado o diziam que nada disso viria de graça, e o levaram a perguntar ao senhor, que segurava a máscara tão perto de Marco:
-E o que eu deveria fazer para receber esse... Presente?
-Absolutamente nada, meu caro rapaz! Eu espero que essa máscara traga paz a sua alma, só isso. Existem, porém, regras...
“Claro” pensou Marco. “Não acredito que ainda estou prestando atenção nesse maluco”, e ele desejou que sua parada chegasse para que ele tivesse uma desculpa para sair de perto do velho. Mas parecia que, por mais que o ônibus rodasse e sacolejasse, ele não avançasse de fato, como se estivesse parado no tempo, dando ao velho todo o conforto para continuar.
-A máscara tem o poder de deixa-lo irreconhecível a qualquer um. Você pode alterar sua aparência a seu bel-prazer enquanto estiver usando-a, e ninguém será capaz de discerni-lo. Se fotografado... – o velho grunhiu – não tínhamos que nos preocupar com isso algum tempo atrás... Se fotografado ou filmado enquanto usando a máscara, a câmera revelará a aparência grotesca do objeto. Então evite isso, sim?
Marco começou a acreditar que o homem falava sério, e uma sensação de desespero o atingiu. Ele não queria nada disso, e as palavras seguintes do velho apenas aumentaram sua angústia.
-Mais uma coisa. Se conseguir usar a máscara por uma semana, então ela é sua. Poderá usá-la até o resto de seus dias. Porém, embora a máscara o torne anônimo, ela não o torna imortal. Se você morrer usando-a, ela voltará a sua aparência normal, e seu corpo com ela. E, caso isso aconteça... Você é meu. – O velho abriu então um sorriso macabro, revelando dentes verdes e podres – para sempre.
O ônibus subitamente parou, e Marco reconheceu com alívio a sua parada. Ele saltou para longe do velho o mais rápido possível, certo de que aquele encontro povoaria seus pesadelos por muitas noites. Enquanto andava até o prédio em que trabalhava, ele não conseguia tirar da cabeça a imagem da máscara grotesca, suas farpas de madeira se soltando aleatoriamente da superfície em que estava estampado o rosto inexpressivo. Mas ele também não conseguia parar de imaginar o que teria acontecido se ele tivesse aceitado o objeto profano... Verdadeiro anonimato? Não era isso que, de fato, sua mente e sua alma desejavam?
Minutos depois, Marco havia esquecido tudo sobre esse episódio desagradável, e se concentrava no trabalho a sua frente. Não demorou muito para que este parecesse interminável e tedioso, e lá estava ele de novo na rede social de seu amor perdido. Um segundo depois Marco ouviu os passos de seu chefe e se apressou em fechar a página da internet, parecendo absorto em seu trabalho e completamente alheio ao fato de que seu superior se debruçava ao seu lado.
O homem fedia a hortelã, como se embebesse suas roupas na planta. Seu hálito era quente e sua presença, insuportável. Marco precisou de toda sua força de vontade para não se virar e gritar, mas ele se afastou lentamente, continuando seu passeio opressor.
O advogado bufou, pensando que alguém deveria colocar aquele homem no seu lugar... Quem ele pensa que é, supervisionando seus subordinados como se fosse um feitor de escravos? O jovem pegou sua mochila a procura de algo para beber. Se pelo menos ele não fosse demitido imediatamente após reclamar... Se pelo menos...
Então algo gelou o sangue de Marco. Na mochila, meio escondida entre uma capa de chuva... Estava a máscara. Como o velho teria conseguido coloca-la em sua mochila? Teria sido na sua pressa para se afastar? Como Marco não notara isso antes? E, mesmo assim, os olhos de madeira encaravam Marco diretamente... Desafiando-o a ver o mundo do seu jeito. Sua expressão vazia era quase tão perturbadora quanto seu pobre trabalho artesanal. O jovem considerou a ideia por um momento. Que mal poderia fazer? Era só uma máscara feia de madeira.
Marco se levantou subitamente, levando a mochila consigo para o banheiro, que por sorte encontrava-se vazio. Ele a largou no chão e tirou de lá a máscara, alternando seu olhar para ela e para sua própria reflexão no espelho. Era a primeira vez que ele a tocava. Sua superfície era áspera, e as farpas mordiscavam seus dedos. O interior era tão mal feito quanto o exterior, porém os buracos dos olhos pareciam brilhar, convidando-o a se aproximar...
Assim que a madeira tocou seu rosto, Marco fechou os olhos e inalou profundamente o cheiro de uma floresta impossivelmente antiga e misteriosa. Ele pensava no velho que lhe dera a Máscara, e imaginou quem ele era...
Quando abriu os olhos, Marco pulou para longe do espelho, aterrorizado. Na sua frente, a imagem do velho macabro materializara-se, com seus olhos maliciosos, sua barba mal feita e suas costas curvadas. Mas ele parecia tão assustado quanto Marco, se encostando à parede da mesma maneira...
O advogado então, movido por puro instinto, levantou lentamente sua mão esquerda, e olhou abismado para o espelho enquanto o velho fazia o mesmo. Ele levou as mãos à face e sentiu as farpas da Máscara, enquanto a imagem no espelho tocava seu rosto. Ao olhar para sua mão através das fendas da Máscara, tudo o que Marco via era uma mão jovem, com unhas bem cuidadas; Porém, ao olhar para o espelho, ele via a mão do velho, encardida e repugnante. O jovem (ou velho?) mal teve tempo de se perguntar como era possível quando ouviu o ranger da porta, e viu o olhar de espanto de um de seus companheiros de trabalho. Sua voz soava igualmente espantada:
-O que você está fazendo aqui? Como entrou?
-Co... Como? – Ao pronunciar as palavras, ele ouviu a voz pastosa do velho falando por sua boca. Ele percebeu que também estava vestido com os trapos do velho, exatamente como se lembrava deles, e parecia um mendigo. Marco resolveu então fazer um pequeno experimento, e imaginou o velho vestido com o mais fino terno, um relógio caro e sapatos importados. Imaginou sua barba bem feita, suas unhas limpas, seus dentes bem cuidados e sua voz resoluta. Então se dirigiu ao confuso colega – O que quer dizer, filho? Eu trabalho aqui há anos!
O outro pareceu confuso, e levou as mãos a cabeça como se a sentisse doer. Murmurou desculpas, e se apressou a pia para lavar o rosto. Marco sorria de orelha a orelha enquanto olhava de relance sua imagem no espelho, de terno, relógio e aparência austera.

Um comentário:

  1. Gostei muito do que li e aguardarei ansiosa a continuação da história. Me avise qdo postar.

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