Marco caminhou pelo corredor, mal conseguindo conter seu
espanto. Era tudo real.
Ele sabia que as pessoas ao seu lado olhariam para ele e se
encheriam de respeito ao ver um senhor em um terno impecável, caminhando com
resolução entre os outros empregados como se fosse dono do lugar. Marco sentia
também que, se ele se dirigisse a um deles e pedisse um relatório de
performance ou qualquer outro termo técnico complicado, eles se desesperariam
no ato, correndo para satisfazer os desejos do homem que, provavelmente,
fundara a firma. Aquele tipo de poder o consumia, e Marco se embriagava nele
sem moderação. Ele se sentia cheio de
energia, ansioso para testar todas as possibilidades intermináveis que a
Máscara proporcionaria...
E então, como um solo de piano interrompido em uma nota
aguda demais, Marco se lembrou da funesta condição imposta pelo velho que,
apenas algumas horas atrás, dera esse estranho presente. Uma semana de uso ou a
morte? Marco estava perfeitamente saudável, e não planejava morrer tão cedo.
Não quando ele possuía tamanho poder...
O jovem advogado alcançou sua mesa e, em uma fração de
segundo, retirou a máscara e guardou-a. Seu corpo não sentiu nada, mas sua alma
percebeu que as pessoas não mais olhavam com deferência e espanto. Marco tecia
planos complexos e ideias intermináveis a fim de experimentar a máscara, e em
uma tentativa inútil de se controlar ligou o computador mais uma vez, mas ele
mal enxergava as imagens que apareciam na tela luminosa à sua frente. Não havia
nada em sua vida vazia que se comparasse com a máscara, e ele mal podia esperar
para usá-la de novo.
Ao final de um dos dias mais longos de sua vida, Marco
arrumou suas coisas para deixar o trabalho. Não podia mais suportar a
abstinência, e teria passado reto em frente ao seu chefe, se esse não tivesse
gritado seu nome e gesticulado para sua sala, com um ar impiedoso. Com um
grande esforço, o advogado deu meia volta e entrou na sala do chefe, tão
espaçosa quando comparada com o cubículo minúsculo de Marco, e sentou-se com a
mochila no colo, apalpando o tão desejado objeto de madeira.
-Marco, precisamos conversar.
O jovem mal prestava atenção no chefe. Sim, olhava para ele,
mas através dele, com a imaginação correndo solta. Sua gravata queimava lhe a
pele, forçando-o a alargá-la involuntariamente. O homem à sua frente continuava
resmungando, mas sua voz estava abafada, como se falasse contra o vento. As
próximas palavras, entretanto, tiraram o jovem de seu devaneio:
-Você está demitido, Marco.
Marco piscou, olhando sem entender. Seu chefe, um homem duns
quarenta anos, franzia a testa, arregalando os olhos negros. Seu tom de pele
claro fazia a luz da lâmpada refletir-se perfeitamente em sua cabeça calva, e
sua expressão era de impaciência, como se não aguentasse mais a presença de um
ex-empregado ali. Marco era inteiro choque. Após alguns instantes de silêncio desconfortável,
Marco conseguiu balbuciar um patético “por quê?”.
-Francamente, a companhia não pode mais arcar com sua
improdutividade, Marco. Nós sabemos que sua... decepção pessoal – Marco sabia
que ele sabia exatamente quão afetado o jovem ficara após ter sido deixado por
sua namorada – pode ter sido uma desculpa para problemas no passado, mas já faz
muito tempo e, francamente, estou cansado desse seu olhar perdido! Nunca parece
estar concentrado no mundo à sua volta, Marco! Já era tempo de acordar de
sonhos e romances infantis.
O chefe se sentou, apanhou uma caneta, caçou uma folha
qualquer em sua gaveta, e a retirou escandalosamente. Em seguida, assinou a
folha, e o rabiscar da caneta no papel tornavam a raiva monumental de Marco
inaudível. Ele considerou cuidadosamente usar a máscara para matar o chefe.
Espera-lo do lado de fora do prédio, tomar a forma de um drogado qualquer e...
-Apesar de seu comportamento questionável, estou lhe
escrevendo uma recomendação. Boa sorte no futuro.
Aquilo era o máximo que Marco podia suportar. Receber um
pedaço de papel ridículo e ser mandando embora? E, pior, ser tratado como
inferior por aquele homem que se considerava algum deus, detendo o poder de
vida e morte, acreditando estar sendo piedoso? O jovem levantou-se de um salto
e deixou a sala, desdenhando a recomendação. Agora mais do que nunca ele
desejava desaparecer, nunca mais ser reconhecido. Agora Marco desejava
anonimato completo.
E, sem perceber, ele já havia colocado a Máscara.
Como um viciado imediatamente após outra dose, Marco se
sentiu no paraíso. Ele podia ser quem ele quisesse. Podia ser instantaneamente
famoso ou jamais ser notado novamente. Sua mente atravessou as possibilidades,
e ele sentia que a Máscara acompanhava seus pensamentos sem esforço,
convidando-o a ser mais ousado, pedindo um verdadeiro desafio.
Mas os pensamentos do advogado estavam direcionados a sua
vingança. Aquele homem medíocre estava prestes a aprender onde era o seu lugar.
Se sentia tão poderoso, demitindo e contratando funcionários a seu
bel-prazer... Marco considerou tomar a forma do velho de antes, passar-se por
dirigente e demitir aquele que o demitira. Com certeza ele não seria
questionado... Não, não seria duradouro. Teria que manchar a sua reputação de
uma maneira irremediável, não dando espaço para dúvidas sobre o caráter daquele
homem odioso.
A Máscara interpretou seus pensamentos, e antes que se desse
conta, os outros empregados o cumprimentavam, o chamavam ‘chefe’. Marco mal pôde
acreditar, embora não houvesse mais razões para duvidar. Caminhou casualmente
até a janela, e examinou seu tênue reflexo no vidro transparente, mas isso foi
suficiente: lá estavam a cabeça calva e os olhos negros. Ele havia se tornado o
homem que tanto odiara... Literalmente.
Quão apropriado, pensou o jovem.
Saboreando cada momento, Marco desceu até a garagem do
prédio, onde o manobrista lhe entregou imediatamente as chaves do carro do
chefe, agora seu. Acomodou-se no banco de couro, olhou em volta e encontrou a
carteira do chefe no porta-luvas. Um plano já estava consolidado na mente feroz
de Marco. Ligou o motor e estava na rua, com o caríssimo automóvel. O advogado
sentia o poder do motor, e se dirigia a um sinal fechado. Ele via os outros
carros esperando a passagem das pessoas que, como ele, só tentavam seguir com
suas vidas. Tanto pior, pensara.
Ele olhou de relance para os pedestres a sua frente, incapaz
de sentir piedade. Então acelerou subitamente, e teve a impressão que não
somente ele, mas a Máscara também sorria.
Os pedestres mal perceberam o que os atingira. Dois morreram
no instante do impacto, um terceiro foi arremessado para longe e mais um
feriu-se tentando se jogar. Marco perdeu
controle do veículo e bateu contra um poste, certo de que isso apenas
adicionaria drama ao ato digno de peça teatral. Ele sentiu o cheiro de náilon
quando o air bag se abriu, protegendo-o do impacto. Apesar de tudo, a Máscara
continuava no lugar, e o jovem sabia que ainda mantinha a aparência de antes.
Sabia também que a cena fora presenciada por dezenas de testemunhas, e quando
cambaleou para fora do veículo e sentiu os olhares de horror dos transeuntes,
percebeu que seu plano havia funcionado: Marco transformara o chefe em um
assassino.
Ele se afastou do carro, largou deliberadamente a carteira
do chefe no asfalto e correu para longe, a adrenalina impulsionando seu corpo,
e alguns repentinos heróis tentaram persegui-lo, porém assim que virou a esquina
Marco concentrou-se no velho repugnante e observou com satisfação seus
perseguidores procurarem em vão por um homem branco careca. Não pode se conter
quando viu que a identidade do homem havia sido encontrada e usou a voz pastosa
do velho para perguntar, com a maior inocência do mundo, qual era o motivo de
toda a comoção.
Marco nunca se sentira tão bem antes como se sentia agora,
quando ouviu os indignados cidadãos apontarem para a foto na carteira de
motorista e descreverem seu chefe como assassino, louco e outros adjetivos mais
fortes. O advogado acenou com a cabeça, adicionando um genérico comentário ‘o
mundo está perdido’ que julgara apropriado para um velho e se afastou quando
ouviu as primeiras sirenes, muito embora não houvesse a menor possibilidade de
que ele fosse conectado ao acidente.
O que era o poder de um superior em uma firma, quando
comparado ao que Marco ostentava agora? Não demoraria muito até que ele fosse
procurado pela polícia e preso, sem jamais entender. Talvez ele até pensasse
estar louco, o que apenas tornaria a vingança mais deliciosa.
Quando estava longe de quaisquer olhares, Marco retirou a
máscara, e o mundo perdeu a cor. Ele sentia sua mente mais lenta, sem ânimo nem
propósito. No momento seguinte, a culpa o atingiu como o carro atingira aqueles
pedestres minutos antes. Houveram mortes, feridos... Tudo para quê? Vingança...
Um sentimento instintivo, inerente, insaciável e inescrupuloso. Marco
conseguira o que queria, e começou a perceber que jamais poderia ter feito o
que fez se não instigado pela máscara. Ele se lembrou da sensação de êxtase ao
realizar sua vingança, convencido de que não havia nada melhor no mundo, seus
pensamentos belicosos impulsionados pelo poder embriagante da máscara. Todo
esse êxtase se fora e só restava a culpa, igualmente gigantesca, porém racional.
Marco andava sem rumo, perdido em seus pensamentos e em seu
pesar, prometendo a si mesmo nunca mais tocar na maldita máscara, quanto
estacou na calçada. Olhava fixamente para uma tela de televisão, sintonizada em
um canal de notícias que relatava um acidente especialmente brutal em uma
movimentada avenida da cidade. Seu pesar e culpa foram imediatamente
substituídos por medo e desespero.
Pois na televisão, o noticiário passava as imagens inéditas
de uma câmera de trânsito... Minúscula, quase invisível, mas que estava lá, e
gravara a cena inteira. Realmente, era grandiosa como o ato final de uma ópera
particularmente macabra. Exatamente como o velho dissera: As testemunhas viram
a imagem calva de seu chefe atropelando aquelas pessoas. Porém, na câmera, as
imagens mostravam um homem magro e alto, vestindo uma máscara de madeira. O
fato de o acidente ter sido tão violento foi eclipsado: Todos os canais falavam
do atropelador mascarado, e o que significava aquele objeto tão incomum. A
polícia já traçava um perfil baseado no tipo físico do homem, e Marco
empalideceu quando viu na tela um oficial descrever a aparência do advogado.
Ele quase podia ouvir a máscara gargalhar.
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