O tamborilar da água na janela encardida do ônibus embalava
Marco em um sono sem sonhos. A cada tranco do velho monstro de metal, o
recém-formado advogado se aproximava da sua ilustre morada: um apartamento
pequeno, sujo e barato escondido entre dois prédios muito mais chamativos.
O ônibus barulhento parou para que Marco descesse; uma
carruagem digna de seu príncipe. O jovem era relativamente alto, com a barba
bem aparada como era de se esperar de um advogado de sua classe. O cabelo liso
caindo na nuca e escondendo sua testa acentuava seus olhos escuros, lábios
finos e nariz reto.
Marco nem se deu ao trabalho de correr debaixo da chuva
torrencial, pois ele lera em algum lugar que isso só piorava as coisas, mas agora
não tinha certeza; poderia ter sido o contrário. Ele puxou seu casaco para cima
com força, com a esperança de que o gesto intimidasse a chuva e a fizesse
parar. Já encharcado, Marco alcançou a porta de seu apartamento, forçou a chave
pra dentro e dois lances de escada depois, adentrou a calma e a tranquilidade
de seu castelo: livros largados pelo sofá, louça de dois dias entupindo a pia e
comida congelada.
Passando reto por tudo isso, Marco alcançou seu laptop, sua
janela para fora do mundo exterior que o sufocava. Ao abri-la, seu browser mostrou as páginas
mais visitadas, e como que zombando dele, lá estava a número um: a rede social
da sua ex. Mais visitada que a sua própria. Protegido por uma tela, Marco
revisou cada detalhe possível da vida dela: desde comentários em fotos até
mensagens para tios, nada escapava da melancolia do advogado.
Por fim, cansou-se e desligou o computador. Empurrou alguns
livros para o chão e dormiu no sofá, amaldiçoando seu chefe por fazê-lo acordar
tão cedo. No dia seguinte, ao som de seu celular gritando e esperneando, ele
amaldiçoou seu chefe mais uma vez enquanto se preparava para fazer a jornada de
volta para um lugar que ele nem queria estar.
Com uma mochila no ombro, Marco correu para o ponto de
ônibus, já atrasado. Ele ouviu os gritos do senhorio, algo sobre o aluguel, e
sentiu uma vontade irresistível de descarregar sua frustação nele, mas já
estava atrasado o suficiente. Ao
alcançar o ponto, respirou aliviado por meio segundo até se voltar para um
casal, também esperando pelo transporte, se beijando sem pudor algum, ali, na
frente de todo mundo. Isso enfureceu Marco, e ele desejou não estar cansado da
noite mal dormida para dar um sermão naquela indecência.
Quando o ônibus chegou, Marco quis perguntar ao motorista
por que tanta demora, pois ele já estava bem atrasado, mas não disse nada.
Pagou ao cobrador silenciosamente e se sentou do lado da janela, com sua
mochila ocupando o assento ao seu lado para evitar conversas desnecessárias
porque, francamente, quem se importa em conversar com uma pessoa que você nunca
viu e provavelmente nunca verá de novo?
Imerso nesses pensamentos, o olhar de Marco cruzou com o de
um senhor de chapéu, a barba branca caindo do queixo e os lábios tortos, como
se estivesse prestes a sorrir. Estava apoiado a uma bengala e, com a outra mão
segurava-se para não cair com os solavancos do ônibus. Usava um capote cheio de
bolsos e sapatos gastos, e tudo na sua aparência o dava um ar de desdém que
enervou o advogado, o que não era muito difícil. O maior de seus temores se
concretizou quando o velho, apontando para a mochila, pediu para se sentar ao
seu lado.
Marco não teve forças para recusar, e em um protesto
silencioso, retirou a mochila e se concentrou na janela, evitando qualquer
contato com o velho. Infelizmente, o velho se inclinou e disse, com uma voz
pesada, como se grunhisse:
-Você não queria estar aqui, queria, filho?
Marco se virou, como se não houvesse escutado direito, mas
antes que dissesse algo o velho continuou.
-Se pudesse você estaria a milhares de quilômetros daqui, em
uma praia ensolarada, numa ilha deserta. Mas talvez não precise. Quem sabe se
você pudesse ser apenas invisível... Quem sabe então sua vida seria mais
tolerável.
O jovem percebeu que o velho era louco, mas havia algo nele
que o intrigava. Sua aparência parecia ter mudado de desdém para expectativa,
como se pacientemente esperasse por algo tão certo quanto o pôr-do-sol.
-Você sabe do que eu estou falando – continuou o senhor –
Anonimato. Ser capaz de dizer e fazer o que quer que queira, sem consequências.
Se tornar um completo estranho,
inidentificável e invisível. Sim, você anseia por algo assim, não, criança?
Marco olhava sem entender, mas ele sentia que, no fundo,
entendia muito bem. Seu âmago realmente desejava desaparecer, porém se fazer
presente. Se ele pudesse ser o centro das atenções em um momento, fazer com que
todos vissem o mundo como ele via em um discurso inspirador e sumir no momento
seguinte... Isso seria simplesmente perfeito. Uma dádiva que Marco com certeza
faria por merecer. Sua mente era um livro aberto para o velho, agora com a boca
disforme contorcida em um sorriso malicioso.
-Eu posso fazer seu sonho virar realidade... Se for o desejo de sua mente e de sua alma,
assim será. – o velho tirou de dentro do casaco grande demais para ele o objeto
mais feio que Marco já vira. Era uma máscara de madeira grosseiramente
esculpida, com farpas em todo lugar devido a visível inexperiência do artesão e
buracos malfeitos para os olhos, formando feições inexpressivas e perturbadoras
– tudo o que você precisa fazer é pôr a máscara. Você jamais será reconhecido
de novo; alcançará a forma mais pura de anonimato.
O impulso inicial de Marco era rir do pobre homem e dá-lo
como louco, se livrando do problema imediatamente. Mas havia algo na máscara
que o atraía, a própria feiura que o repelira também o intrigando. Ele quase
podia ouvir a máscara sussurrando, chamando, gritando seu nome. Porém seus
instintos de advogado o diziam que nada disso viria de graça, e o levaram a
perguntar ao senhor, que segurava a máscara tão perto de Marco:
-E o que eu deveria fazer para receber esse... Presente?
-Absolutamente nada, meu caro rapaz! Eu espero que essa
máscara traga paz a sua alma, só isso. Existem, porém, regras...
“Claro” pensou Marco. “Não acredito que ainda estou
prestando atenção nesse maluco”, e ele desejou que sua parada chegasse para que
ele tivesse uma desculpa para sair de perto do velho. Mas parecia que, por mais
que o ônibus rodasse e sacolejasse, ele não avançasse de fato, como se estivesse
parado no tempo, dando ao velho todo o conforto para continuar.
-A máscara tem o poder de deixa-lo irreconhecível a qualquer
um. Você pode alterar sua aparência a seu bel-prazer enquanto estiver usando-a,
e ninguém será capaz de discerni-lo. Se fotografado... – o velho grunhiu – não tínhamos
que nos preocupar com isso algum tempo atrás... Se fotografado ou filmado
enquanto usando a máscara, a câmera revelará a aparência grotesca do objeto.
Então evite isso, sim?
Marco começou a acreditar que o homem falava sério, e uma
sensação de desespero o atingiu. Ele não queria nada disso, e as palavras
seguintes do velho apenas aumentaram sua angústia.
-Mais uma coisa. Se conseguir usar a máscara por uma semana,
então ela é sua. Poderá usá-la até o resto de seus dias. Porém, embora a
máscara o torne anônimo, ela não o torna imortal. Se você morrer usando-a, ela
voltará a sua aparência normal, e seu corpo com ela. E, caso isso aconteça...
Você é meu. – O velho abriu então um sorriso macabro, revelando dentes verdes e
podres – para sempre.
O ônibus subitamente parou, e Marco reconheceu com alívio a
sua parada. Ele saltou para longe do velho o mais rápido possível, certo de que
aquele encontro povoaria seus pesadelos por muitas noites. Enquanto andava até
o prédio em que trabalhava, ele não conseguia tirar da cabeça a imagem da
máscara grotesca, suas farpas de madeira se soltando aleatoriamente da
superfície em que estava estampado o rosto inexpressivo. Mas ele também não
conseguia parar de imaginar o que teria acontecido se ele tivesse aceitado o
objeto profano... Verdadeiro anonimato? Não era isso que, de fato, sua mente e
sua alma desejavam?
Minutos depois, Marco havia esquecido tudo sobre esse
episódio desagradável, e se concentrava no trabalho a sua frente. Não demorou
muito para que este parecesse interminável e tedioso, e lá estava ele de novo
na rede social de seu amor perdido. Um segundo depois Marco ouviu os passos de
seu chefe e se apressou em fechar a página da internet, parecendo absorto em
seu trabalho e completamente alheio ao fato de que seu superior se debruçava ao
seu lado.
O homem fedia a hortelã, como se embebesse suas roupas na
planta. Seu hálito era quente e sua presença, insuportável. Marco precisou de
toda sua força de vontade para não se virar e gritar, mas ele se afastou
lentamente, continuando seu passeio opressor.
O advogado bufou, pensando que alguém deveria colocar aquele
homem no seu lugar... Quem ele pensa que é, supervisionando seus subordinados
como se fosse um feitor de escravos? O jovem pegou sua mochila a procura de
algo para beber. Se pelo menos ele não fosse demitido imediatamente após
reclamar... Se pelo menos...
Então algo gelou o sangue de Marco. Na mochila, meio
escondida entre uma capa de chuva... Estava a máscara. Como o velho teria
conseguido coloca-la em sua mochila? Teria sido na sua pressa para se afastar?
Como Marco não notara isso antes? E, mesmo assim, os olhos de madeira encaravam
Marco diretamente... Desafiando-o a ver o mundo do seu jeito. Sua expressão
vazia era quase tão perturbadora quanto seu pobre trabalho artesanal. O jovem
considerou a ideia por um momento. Que mal poderia fazer? Era só uma máscara
feia de madeira.
Marco se levantou subitamente, levando a mochila consigo
para o banheiro, que por sorte encontrava-se vazio. Ele a largou no chão e
tirou de lá a máscara, alternando seu olhar para ela e para sua própria
reflexão no espelho. Era a primeira vez que ele a tocava. Sua superfície era
áspera, e as farpas mordiscavam seus dedos. O interior era tão mal feito quanto
o exterior, porém os buracos dos olhos pareciam brilhar, convidando-o a se
aproximar...
Assim que a madeira tocou seu rosto, Marco fechou os olhos e
inalou profundamente o cheiro de uma floresta impossivelmente antiga e
misteriosa. Ele pensava no velho que lhe dera a Máscara, e imaginou quem ele
era...
Quando abriu os olhos, Marco pulou para longe do espelho,
aterrorizado. Na sua frente, a imagem do velho macabro materializara-se, com
seus olhos maliciosos, sua barba mal feita e suas costas curvadas. Mas ele
parecia tão assustado quanto Marco, se encostando à parede da mesma maneira...
O advogado então, movido por puro instinto, levantou
lentamente sua mão esquerda, e olhou abismado para o espelho enquanto o velho
fazia o mesmo. Ele levou as mãos à face e sentiu as farpas da Máscara, enquanto
a imagem no espelho tocava seu rosto. Ao olhar para sua mão através das fendas
da Máscara, tudo o que Marco via era uma mão jovem, com unhas bem cuidadas;
Porém, ao olhar para o espelho, ele via a mão do velho, encardida e repugnante.
O jovem (ou velho?) mal teve tempo de se perguntar como era possível quando
ouviu o ranger da porta, e viu o olhar de espanto de um de seus companheiros de
trabalho. Sua voz soava igualmente espantada:
-O que você está fazendo aqui? Como entrou?
-Co... Como? – Ao pronunciar as palavras, ele ouviu a voz
pastosa do velho falando por sua boca. Ele percebeu que também estava vestido
com os trapos do velho, exatamente como se lembrava deles, e parecia um
mendigo. Marco resolveu então fazer um pequeno experimento, e imaginou o velho
vestido com o mais fino terno, um relógio caro e sapatos importados. Imaginou
sua barba bem feita, suas unhas limpas, seus dentes bem cuidados e sua voz
resoluta. Então se dirigiu ao confuso colega – O que quer dizer, filho? Eu
trabalho aqui há anos!
O outro pareceu confuso, e levou as mãos a
cabeça como se a sentisse doer. Murmurou desculpas, e se apressou a pia para
lavar o rosto. Marco sorria de orelha a orelha enquanto olhava de relance sua imagem no espelho, de terno, relógio e aparência austera.
Gostei muito do que li e aguardarei ansiosa a continuação da história. Me avise qdo postar.
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