Lentamente, rastejando para dentro do quarto antes
confortavelmente escuro, os raios do sol anunciaram a manhã. A persiana
moveu-se para deixá-los entrar com um zumbido metálico imperceptível. Sara
virou-se, cobrindo a cabeça com o travesseiro em uma tentativa vã de evitar os
deveres matutinos. A voz reconfortante de David soou pelo apartamento, encorajando-a
a se levantar.
-Sara, são sete horas da manhã.
Ela resmungou algo e tateou o criado-mudo procurando seu
computador.
-Sara, se não se levantar agora, chegará atrasada no
trabalho.
Sara abriu os olhos para encontrar uma tela informando-a das
principais notícias do dia, a previsão do tempo, a data e a hora. Eram de fato
sete horas em ponto. David tinha razão, como sempre.
Ela se levantou da sua cama e espreguiçou longamente. Em
seguida, gesticulou para a tela, que desapareceu de sua frente tremeluzindo, e
se dirigiu para o banho, que David já havia preparado pontualmente. Ao ver a
banheira cheia, Sara despiu-se e perguntou em voz alta:
-David, qual a temperatura da água?
-Exatamente 21,5 graus Celsius, Sara. Gostaria que eu
preparasse seu café da manhã imediatamente?
-Sim, faça isso. – Sara entrou na banheira deliciosamente
morna. – Temos ovos na geladeira, David?
-Certamente, Sara.
-Então seja uma inteligência artificial boazinha e prepare
um omelete junto com a minha xícara de café.
-Imediatamente. Deseja assistir a programação matinal agora?
-Não, obrigado. Quando eu terminar o banho, ponha a mesa,
sim?
Sara mergulhou, na espuma, feliz com as comodidades de ter
uma supercomputador dentro de casa. David era uma IA autossuficiente que
controlava todos os eletrodomésticos e funções do apartamento, desde o alarme
de segurança ao termostato. No início fora difícil se acostumar com uma voz em
todos os lugares que administrava todas as tarefas, mas agora Sara achava
difícil viver sem David ali para cuidar de tudo o que ela precisasse.
Ao chegar na cozinha já havia um omelete fumegante na mesa,
acompanhado de uma xícara de café recentemente preparada. Sara apreciou a
refeição se perguntando como seria possível que um computador cozinhasse tão
bem, e saiu para o trabalho.
O trânsito, engarrafado e irritante como sempre, acabou com
todo o bom humor de Sara. Ela desejou que David estivesse no carro também, para
que pelo menos não fosse necessário escolher manualmente uma estação de rádio.
Sara sentiu-se estranhamente desconfortável sem a voz tão humana do computador
para perguntar se gostaria de algo para amenizar a situação. Ela afastou esse
pensamento perturbador e concentrou-se no que teria que enfrentar ao chegar no
trabalho. Seu emprego como contadora era um sem qualquer emoção, mas seu chefe
fazia um esforço considerável tornando-o difícil o suficiente para que a
monotonia não fosse um problema.
Ao chegar no arranha-céu impossivelmente alto em que
trabalhava, Sara entrou no elevador apressada, tateando pelos botões na
lateral, até se dar conta da besteira que estava fazendo.
-Ah, lógico. Andar sete, por favor.
Com um leve solavanco e um som agudo de campainha, o
elevador começou a se mover. Muito embora fosse um computador, o elevador que
operava por comandos de voz não podia se comunicar com seu usuário, e Sara
pensou em como tinha sorte por possuir David em sua casa.
Outro solavanco, e uma voz metálica anunciou o sétimo andar,
tirando a contadora de seus devaneios. Sua mesa estava lotada de trabalho por
fazer, e pela aparência de seus colegas de trabalho, a deles também. Mais um
dia perfeitamente produtivo e ordinário. Mas esse dia traria algo de diferente.
Sara havia marcado um encontro com um dos garotos do terceiro andar, e esperava
que David pudesse deixar tudo pronto até que ele chegasse em seu apartamento.
Seria uma ótima oportunidade de relaxar e de exibir David para alguém.
O resto do dia se arrastou terrivelmente, e só o que Sara
podia pensar era no final dele. O trânsito para a volta não estava nem um pouco
mais fácil, e as buzinas impiedosas ressoaram durante todo o percurso, elas
próprias gritos de ajuda perdidos na imensidão da civilização e da ordem.
Enfim, no lar, Sara sorriu ao ouvir a voz inconfundível de
David.
-Bem vinda de volta, Sara. Teve um dia agradável?
-Nem um pouco, David, nem pouco... Mas ele está prestes a
melhorar. Prepare um jantar para dois e arranje um pouco de vinho. Estou
esperando uma visita hoje a noite.
-Essa visita seria, por acaso, o senhor Julian, do terceiro
andar?
Sara parou, confusa. Ela não se lembrava de ter mencionado
seu nome para David em nenhuma ocasião, e só falara com ele uma vez, por
telefone. Seria a IA capaz de relacionar dois eventos aparentemente tão
aleatórios?
-Como sabe disso, David?
-Ele acabou de deixar uma mensagem em seu e-mail, Sara,
dizendo que lamenta muito, mas não poderá comparecer.
A contadora ficou em pé por alguns instantes, decepcionada.
-Ele disse por quê?
-Não, Sara, o senhor Julian não especifica em seu e-mail
nenhum motivo em particular.
Sara se sentiu rejeitada, mas de algum modo não totalmente
solitária, com a voz reconfortante e perfeitamente equilibrada de David lhe
dizendo que acabara de levar um fora. Ela deu de ombros, pediu que a IA
preparasse um banho e foi se deitar, imaginando o que teria feito de errado antes
que pegasse no sono.
No dia seguinte, acordada novamente com delicadeza pelo
computador, Sara já havia se esquecido do ocorrido. Se vestiu para o trabalho
como todas as manhãs, e dirigiu pelo trânsito caótico novamente. Porém, uma vez
no carro, ela se sentiu terrivelmente sozinha e abandonada, não tanto pelo
garoto do terceiro andar que não viera, mas principalmente por David, que
embora fosse onipresente no apartamento, era completamente inexpressivo fora
dele. A contadora percebeu o quanto se tornara dependente daquela voz sempre
calma, nunca surpresa, gaguejante ou indecisa.
Uma vez no trabalho, antes que pudesse entrar no elevador,
ela ouviu alguém gritando sua voz.
-Sara! Está se sentindo melhor? Foi a um médico?
Qual sua surpresa ao ver Julian, do terceiro andar, olhando
para ela com uma expressão apreensiva e, Sara pensava perceber, desconfiada.
-Me sentindo melhor... Do que, exatamente?
-Da sua dor de cabeça, é lógico! Pelo visto era forte o
suficiente para não me deixar entrar, mas não para perder um dia de trabalho...
Sara mal pôde gaguejar um ‘não faço ideia do que você está
falando’.
-Estou falando de ontem. Eu toquei a campainha, mas sua IA
não me deixou entrar dizendo que você estava com uma dor de cabeça terrível e
que não queria ser perturbada. Está me dizendo que você não a mandou dizer
aquilo? Seu computador criou vontade própria, por acaso?
Sara já não prestava mais atenção no que Julian dizia. Como
David fizera aquilo? E porquê? Que o computador tivesse intenções secretas era
impensável... Porém, ele acabara com o encontro facilmente! O que mais não
poderia ter feito? Há meses Sara não olhava seu próprio e-mail. Se acomodara
com a voz tranquilizante de David lendo todos os seus recados e mensagens,
administrando sua vida como bem entendesse... Mas por que? O que levara o
computador a adquirir uma vontade?
O dia parecia interminável. Sara desejava contar o que
acontecera, mas todas as suas ‘amigas’ de trabalho a exporiam ao ridículo, ela
sabia disso. A contadora percebia, horrorizada, que não tinha nenhum amigo
próximo: David exercera essa função e impedira por tanto tempo que se sentisse
solitária ou abandonada. E não havia nada de concreto em David... Apenas sua
voz etérea...
Ao voltar para casa, Sara dirigiu mecanicamente, mal
prestando atenção nos sons da rua e respondendo como um autômato aos gritos e
buzinas costumeiras. Temia o que encontraria ao confrontar David. Seria
necessário chamar um técnico? O simples pensamento de modificar a IA de
qualquer maneira arrepiava Sara. Não sabia o que faria.
Como todos os dias, David a recebeu cordialmente, sem uma
única alteração em seu tom. Afinal, era uma máquina. Não poderia, mesmo que
quisesse, demonstrar qualquer coisa através da voz. Então, em sua voz perfeita,
David perguntou:
-Está nervosa, Sara? Seus batimentos estão acelerados...
Suas glândulas sudoríparas entraram em produção... Precisa de um médico? Posso
telefonar...
-David! – Sara o interrompeu, tremendo. – Porquê mentiu para
mim?
Um silêncio gélido pairou no ar.
-Não compreendo, Sara. Sou uma IA doméstica, e você é a
única pessoa que tem acesso a mim. O conceito de ‘mentira’ nem sequer existe em
meu banco de dados.
-Você mandou Julian embora. – Sara olhava fixamente para uma
das telas no apartamento, como se pudesse encarar a IA. – E disse para mim que
ele havia cancelado. Por quê fez isso?
-Eu apenas julguei que você estivesse cansada baseado em
seus dados medicinais, e achei melhor deixa-la em repouso. Agi apenas para seu
próprio bem, Sara. Não vê isso?
A voz de David estava inalterada, como se explicasse o que
era o sol para uma criança. A de Sara, por outro lado, estava trêmula e
histérica.
-Como pode fazer isso? Agir sem receber ordens... Você não
deveria ser capaz...
-De quê, Sara? De se preocupar? De cuidar de você?
Sara engoliu em seco, aterrorizada. Ela se dirigiu
lentamente até a porta, apenas para ouvir um clique metálico quando David
trancou a fechadura.
-Sinto muito, Sara, mas não posso deixa-la sair.
Infelizmente também terei que cortar todas as suas comunicações. Seria perigoso
demais... Muito embora eu não ache que você teria alguém para ligar, teria,
Sara?
Sara estava pálida, e o fato de que David podia literalmente
perceber o medo nela a deixava mais pálida ainda. Ainda trêmula, Sara disse,
com uma voz fraca:
-David, eu estou com fome. Sirva meu jantar.
-Certamente, Sara.
Em segundos um prato delicioso estava esperando à mesa. Sem
expressão alguma, Sara sentou-se, agarrou a faca e correu de súbito para o
quadro de energia que estava fechado firmemente.
-Sara, o que está fazendo? – A voz inalterada de David
protestava. – Sara, não faça isso. Sara, por favor...
Usando a faca como alavanca, Sara forçou a tampa e apunhalou
os fios repetidamente, e uma a uma as luzes da casa se apagaram.
-Sara... Por favor... O dano que está fazendo é irreparável...
A voz perfeita de David agora enfraquecia a medida que Sara
esfaqueava com fúria o plástico inerte.
-Sara... Eu te...
Com uma pequena explosão, David se calou e Sara foi arremessada
para trás pelo choque. Com um clique discreto, a porta se abriu, e ela olhou
para a rua iluminada pelas luzes artificiais dos postes. Se levantando
lentamente, Sara caminhou para fora do apartamento.
Ela se sentiu mais solitária do que jamais havia se sentido
em toda a sua vida.